Penso que os portugueses se esquecem com demasiada frequência que a Espanha, ao contrário do que acontece com Portugal, é um Estado multinacional, em que a sua unidade enquanto país não se alicerça numa língua e cultura únicas e num longo percurso histórico contra um inimigo comum. Ou mesmo como os USA, cuja unidade nacional foi em grande parte construída pelo facto de neles terem encontrado oportunidade de liberdade e de uma vida mais digna os pobres e perseguidos da Europa - mas também de alguma Ásia. Digamos que, raspada alguma camada superficial acumulada por umas poucas centenas de anos de vida em comum, muitas vezes forçada, continua um galego a ter mais a ver com um português do que com um catalão ou um basco, ou qualquer destes com um castelhano. Mais ainda, é muitas vezes esquecido que a sua guerra civil do século XX não opôs apenas a esquerda liberal, socialista, comunista e anarquista, à direita conservadora, fascista e ultra-católica, o trabalho e o capital, mas também as nações basca e catalã ao resto de Espanha e, principalmente, ao domínio de Castela.
Tendo dito isto, é bom lembrar que a precária unidade da Espanha actual muito deve ao rei Juan Carlos e ao seu papel na chamada "transição democrática", que estabeleceu as bases mínimas nas quais a grande maioria dos espanhóis se pôde rever, independentemente da respectiva nacionalidade, língua materna, opção politica ou de regime. Por isso mesmo, o que está agora em causa na tão badalada caçada aos elefantes do rei Juan Carlos, no Botswana, não é apenas uma questão moral pelo facto do rei ter decidido esbanjar uns milhares de euros, numa actividade frívola, num momento de austeridade para a grande maioria dos seus concidadãos. Muito menos uma questão, também ela moral, de ver o seu rei envolvido na crueldade ou brutalidade de uma actividade como a caça grossa, facto que não deixará de chocar muitos dos espanhóis. Embora ambas as questões não deixem de ter o seu peso, o que está fundamentalmente em causa e delas deriva é uma questão política e, neste aspecto, um erro crasso do rei que, ao arriscar com este seu acto colocar em causa a instituição monárquica, que com ele se confunde, não deixará, dado o papel que esta tem desempenhado desde a "transição", de contribuir também para enfraquecer a unidade do pais e o precário equilíbrio multinacional em que esta tem assentado nos últimos anos. Numa república, o eleitorado não deixaria de lhe indicar qual o próximo caminho a seguir. Mas também tenho dúvidas que sem Juan Carlos e a monarquia a Espanha tivesse conseguido percorrer o mesmo caminho que iniciou em 1976 e fosse um país igual ao que é hoje. Mas cumprido esse papel, teremos que nos interrogar se o rei de Espanha ainda faz parte da solução ou, pelo contrário, se tornou num problema que é necessário resolver.