segunda-feira, novembro 17, 2008

A música em Kubrick (1)

Vera Lynn - "We'll Meet Again"

The Byrds - "We'll Meet Again"
Devo começar por dizer que, não sendo um indefectível de Stanley Kubrick, também não poderei dizer que, por vezes, ele não me entusiasmou, muito menos que não o considere um cineasta com uma importância muito particular, única, na história do cinema. Curiosamente, também, os meus filmes favoritos de Kubrick sejam, se a memória de algumas críticas que li in illo tempore não me atraiçoa, alguns dos mais mal amados por essa mesma crítica, como “Barry Lyndon” ou o último “Eyes Wide Shut”, um notável “manifesto” sobre o desejo e o prazer filmado por quem estava perto da morte. Outros considero-os bastante datados, tais como “2001” ou “Clockwork Orange”: não os consigo ver hoje sem pensar no porquê de tanto me terem impressionado, o que não invalida que não tenham sido os mais marcantes. Claro que o humor de “Dr. Strangelove” ainda hoje me diverte tanto como quando o vi pela primeira vez algures na Europa (estava proibido em Portugal), não tendo, este sim, perdido a sua actualidade apesar do fim da guerra fria. Também para “Paths of Glory” e “The Killing” vão algumas das minhas preferências moderadas, deixando para o fim dois que positivamente pouco ou nada me dizem (“Full Metal Jacket” e “Shining”) e um, “Spartacus” que constituirá todo ele um capítulo da história de Hollywood, tanto por questões ligadas às actividades políticas de Dalton Trumbo (foi um dos 10 de Hollywood e escreveu o argumento sob pseudónimo - era comum isso acontecer em casos semelhantes ou, então, existir um “testa de ferro” que se apresentava como autor, situação bem retratada no filme “The Front” de Martin Ritt/Woody Allen) como dos percalços de produção: esteve para ser dirigido por David Lean, começou a ser realizado por Anthony Mann e acabou nas mãos de Kubrick, não sem que grandes problemas entre este e Trumbo (mais tarde vi um demasiado pacifista, mas perturbador, “Johnny Got His Gun” realizado por este) tenham surgido. Por essas razões foi, durante muito tempo, um filme muito acarinhado pela esquerda comunista (Trumbo foi membro do Partido Comunista Americano), o que, acho, o sobrevalorizou enquanto filme. Claro que o tema é a luta dos escravos pela liberdade, o que lhe confere um valor e um mérito político próprios, mas, descontando isso e alguma retórica, o filme, desculpem-me a heresia, não andará muito longe de um excelente “sword & sandals”.

Bom, mas o que me traz aqui hoje é o papel da música em Kubrick e, principalmente, o modo como soube utilizar com maestria e a propósito temas previamente existentes, uns adaptando-os, quando isso era essencial ou importante para a estrutura do filme (seria impensável um “Clockwork Orange” com as versões originais e sem Walter Carlos e os sintetizadores) noutros casos mantendo as versões ou interpretações de origem (estou a lembrar-me da “Musica Ricercata”, de Ligeti, em “Eyes Wide Shut”). Pese embora hoje possamos achar (eu acho) demasiado óbvias e fáceis algumas dessas ligações (estou a lembrar-me do “Danúbio Azul” e de “Also Sprach Zarathustra”, este último, a partir daí, usado um pouco por todo o lado para “aberturas dramáticas”, desde congressos políticos a reuniões de empresa), muitos da minha geração chegaram à música erudita através de Kubrick. Por outro lado, e se me permitem que pessoalize (para todos os efeitos este é um blog pessoal), Kubrick dá-me a oportunidade de conjugar duas das minhas paixões da vida: a música e o cinema.

Passando ao modus operandi, e para que esta nova rubrica não se torne demasiado óbvia, sempre que possível tentarei aqui apresentar interpretações diferentes daquelas que foram utilizadas por Stanley Kubrick nos seus filmes e, para começar por algo bem simples, “We’ll Meet Again”, que acompanha a sequência final de “Dr. Strangelove”, parece-me uma boa solução. Kubrick utilizou, com óbvia ironia para quem se lembra da sequência, o original de Vera Lynn (1939), uma optimista canção de despedida para os soldados britânicos que iam combater na Europa, na WWII. Curiosamente, e tendo por aqui apresentado excertos de “Lipstick On Your Collar”, convém lembrar que a canção foi também utilizada na série “The Singing Detective” de Dennis Potter. O tema foi objecto de variadíssimas versões posteriores (Byrds, Turtles, Johnny Cash). Por isso, junto também a dos Byrds, do álbum “Mr. Tambourine Man”, talvez a minha favorita. E por Kubrick por aqui continuarei, nos tempos mais próximos, sem qualquer preocupação cronológica.

3 comentários:

gin-tonic disse...

Belo trabalho, JC.
O Kubrick também não é um realizador que faça parte do meu panteão. Honestamente terei de dizer que não o abordei com a mesma atenção com que abordei outros relizadores, daí talvez existir da minha parte uma certa leviandade que permite uma definição demasiado simplista de Kubrick. Há filmes que eu deveria rever, principalmente o "Barry Lyndon", excelente banda sonora. Mas considero o "Dr. Strangelove" um grande filme - excpecional Peter Sellers. O meu gosto por standards leva-me a gostar da versão de "We'll Meet Again" cantada pela Vera Lynn e por motivos óbvios bem enquadrada no final do filme. Mas excelente a sua ideia de colocar, também, a versão dos "The Birds".
Um abraço

JC disse...

Obrigado. O Dr. Strangelove tem para mim uma ideia genial: aquela do Peter Sellers lhe fugir sempre, quando se entusiasma, para o discurso e saudação nazis. De antologia!!! Até já citei aqui, no blog, a cena para me referir ao Miguel Frasquilho, do PSD, que em cada intervenção pública s/ o que quer que fosse tinha de falar no "choque fiscal". Era superior às forças dele, não resistia! Se conseguir, veja, ou reveja, tb o "Paths of Glory".
Abraço

Já agora, ontem foi mais um sofrimento. Eu sei que o Estrela não ameaçou mtº, mas, que raio, mais um golito para ´nos acalmar não era nada de menos!

gin-tonic disse...

Pois é… nunca vi o “Paths of Glory”… tantas lacunas…
O “Dr, Strangelove” tem cenas geniais: essa e aquela do piloto do avião, com chapéu de cowboy, a cavalgar a bomba, como se estivesse num rodeo.
Quanto ao jogo, há ali qualquer coisa que me intriga Não consigo saber o que é. Não sei se é o treinador, se são os jogadores que não percebem – ou não querem perceber – o que ele pretende.
Mais variedades como esta e o estado de graça é capaz de começar a murchar… Quase quarenta mil, com o Estrela da Amadora, num domingo quase noite, é obra.