sexta-feira, agosto 05, 2011

Portugal: "apartheid" ou "um país, dois sistemas"?

Haverá muitas e boas razões para que muita gente aplauda as medidas do governo ao "aligeirar" o controlo da ASAE nas "cantinas" das instituições de solidariedade social e em distribuir medicamentos grátis que se encontram perto do final do seu prazo de validade. No fim de contas, dirão, muita comida haverá que, não estando estragada, terá que ser deitada fora "por causa dessas regras estúpidas da ASAE" e também "não faz sentido destruir medicamentos que ainda estão dentro do prazo limite da sua utilização". Bom, mas o problema, o grande problema, é que vivemos num Estado de Direito Democrático e em democracia (mas não só) as leis do Direito são gerais e abstractas, isto é, aplicam-se igualmente a todos sem definirem situações concretas. Não são algo de instrumental ou descartável, isto é, que se usa quando dá jeito e se deita fora quando se tornam incómodas. Ora o Estado, ao definir determinadas regras que regulam a distribuição e consumo de alimentos e medicamentos, considera que são essas leis, e não outras quaisquer, as necessárias para garantir a segurança e saúde pública de todos os cidadãos, e não apenas de alguns. Ao "aligeirar" essas regras para os cidadãos mais pobres o Estado está, pois, a criar, institucionalizar e avalizar uma situação de verdadeiro "apartheid", de "desenvolvimento separado", de "um país, dois sistemas", penalizando, em termos de risco e de saúde pública, um grupo de cidadãos já por si penalizado pela sua situação de pobreza extrema. "És pobre? Então és duplamente penalizado"! Reparem que nem mesmo o "anti-estatista" Banco Alimentar Contra a Fome, posição publicamente assumida pela sua responsável Isabel Jonet, chega a tão longe, limitando-se a distribuir gratuitamente, a quem precisa, produtos comprados e oferecidos, dentro das regras gerais que regulam a distribuição de alimentos, pelos cidadãos cooperantes.

Mas, perguntarão, que pode então o Estado fazer na situação de crise actual? Bom, se considera as actuais leis absurdas ou excessivas (em termos gerais, eu não acho, mas claro que admito posição contrária), deve mudá-las, mas para todos. Se as considera adequadas, deve garantir que todos, sem excepção ou discriminação, têm acesso aos alimentos e medicamentos nas condições adequadas do mercado. Como? De várias formas: quer através de um aumento das transferências sociais para aqueles que efectivamente precisam de apoio, redistribuindo recursos através dos impostos; quer através da formação de um "cabaz de compras", que inclua os bens essenciais, com IVA reduzido (embora eu tenha sérias dúvidas sobre a eficácia da utilização do IVA para redistribuição de recursos, ele tem sido assim utilizado), compensando com o agravamento e reclassificação de outros; quer incentivando a actuação solidária dos cidadãos, instituições e empresas -  a impropriamente chamada "sociedade civil". Haverá mais opções, mas não me compete, aqui e agora, ser exaustivo. O que o Estado não pode nem deve fazer é ignorar as próprias leis com que se rege quando isso dá jeito ou aplicá-las de modo não universal, mais a mais penalizando os já socialmente penalizados. Infelizmente, os indícios existentes mostram que não poderemos esperar nada de muito diferente deste governo. 

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