A função essencial do Estado e dos governos - este ou outros quaisquer - é fazer política. É para isso que eles existem, sempre existiram e existirão. Nas democracias, em nome dos cidadãos que os elegem; nas ditaduras, das classes e grupos sociais que os apoiam. Nas democracias, quando uma maioria de cidadãos deixa de se rever nas opções políticas tomadas, derruba o governo pelo voto; nas ditaduras, quando o governo perde o apoio dos que o suportam, dá-se um golpe de Estado. Não são os governos, portanto, meros gestores de "activos" de um país - se é que em qualquer organização ou instituição existem meros "gestores dos seus activos": agem em função de interesses que se consubstanciam em objectivos políticos e nas estratégias adequadas para os atingir.
Significa isto que quando um Estado, por decisão governamental, decide alienar um ou vários dos seus "activos", privatizando-o, tal tem sempre consequências políticas e tem também na sua base uma estratégia política, mesmo que não abertamente assumida. Como tal, não é exactamente a mesma coisa, nem tem as mesmas repercussões e consequências, vender ao país A ou ao país B, à empresa X ou ao consórcio Y. É que não estamos propriamente a falar de uma família rica que, em ocasião de crise, decide vender as pratas ou as Companhias das Índias dos seus tempos de abastança a "quem der mais": esta recebe o dinheiro e nunca mais vê o comprador; quem compra os activos de um Estado, principalmente quando falamos de empresas que exercem a sua actividade em sectores estratégicos (transportes, energia, água, etc) continua a exercer a sua actividade nesse território e a produzir bens e serviços essenciais aos cidadãos e à execução dos objectivos políticos desse Estado. Assim sendo, e por muita regulação estatal que possa existir, não é indiferente que esses activos sejam comprados e geridos por empresas de países democráticos, onde, por definição, existe liberdade individual e autonomia empresarial, ou por ditaduras, onde essa liberdade não existe e tudo se subordina aos interesses do Estado. Como também não é indiferente que fiquem na posse de empresas de países tradicionalmente aliados, que partilham cultura, valores e objectivos, ou organizações de países ou Estados com os quais existam, ou se preveja virem a existir, contradições graves de natureza política.
Significa isto que as afirmações do Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, devem ser saudadas como uma lufada de ar fresco no bafiento panorama da política portuguesa (e europeia) actual, que esquece os valores em que se baseiam as sociedades que construíram ou onde vivem e se coloca de cócoras, qual aristocrata arruinado, perante "quem dá mais". A mim, pasma-me como aqueles que promovem ou fecham os olhos, directa ou indirectamente, aberta ou veladamente, à interferência de governos como a cleptocracia angolana na política portuguesa venham agora arvorar-se em patriotas sem mácula, barafustando pelo facto do Presidente de uma instituição democrática, de uma União de Estados também eles democráticos, ter posto, certeiramente, o dedo na ferida. Pois, provavelmente doeu-lhes.
4 comentários:
Excelente post meu caro JC. Argumentos mais que desempoeirados e esclarecidos, a fazer sombra aos normais a bafientos comentários da real politik e discursos de conveniência dos nossos governantes. Sair-lhes-á, e a nós também, o tiro pela culatra quando for altura de impor uma mudança estratégica desalinhada com os interesses dos agora accionistas privados. Abraço
Como sabe, não é meu hábito fazer comentários sobre matérias políticas, não porque sobre elas não tenha as minhas opiniões, mas porque geralmente, estou de acordo com os argumentos que costuma usar. Isto é, genéricamente estou de acordo consigo, e como já nos conhecemos há uns tempos largos, excuso-me de lhe vir dar o meu apoio, até porque acredito que não necessite dos meus améns diários.
E neste caso, a coisa corre igual. No entanto, este caso teve uma nuance que não me agradou:
Quando se fala publicamente, o orador deve fazer-se entender. Quando se trata de um político, mais a mais com as responsabilidades do Sr. Martin, mais obrigação tem. Isto é, o que diz deve corresponder exactamente áquilo que quer dizer. De acordo?
Ora passadas umas horas, o Sr. Martin veio dizer que aquilo que disse, não tinha sido aquilo que ouvimos - de viva voz, pois então´- mas outra coisa qualquer que eu acabei por não perceberb o que seria. Ficou-lhe mal. Aliás, como lhe ficou mal vir dar publicamente explicações. Não as devia ter dado. O discurso tinha sido claro, todos percebemos. Ao vir dar explicações, deu também o flanco, e acabou por desdizer o que antes tão bem tinha dito.
Depois, a cereja no topo do bolo, a declaração de "amor" a Portugal. Ainda lhe ficou pior.
Abraço
Não podia estar mais de acordo. Infelizmente, ficam duas nódoas:
- a retractação (correcção de tiro...?) de Martin Schulz, que diminui a pertinência e a justeza do que disse; pena que não tenha tido a coragem de reafirmar a posição que tomou
- a atitude lamentável de todos os partidos políticos portugueses, numa pose marialva de "aqui mando eu", quando competiria pelo menos aos partidos da oposição denunciar a gravidade do que está a decorrer, com muito maiores consequências potenciais para o futuro do que muitos assuntos de lana caprina por que se batem empenhadamente. Saloiíce? Certamente. Falta de visão (estratégica, política, prospectiva)? Indiscutivelmente. Incompetência? Ça va de soi...
Cumprimentos
Obrigado pelos vossos comentários. Concordo genericamente c/ o que dizem, e apesar do "faux pas" das explicações de Schulz (dou algum desconto dada a sua posição de presidente do PE), as suas afirmações acabaram por ser certeiras, ajudando a desmontar a hipocrisia dominante.
Abraço
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