segunda-feira, junho 22, 2009

22 de Junho de 1969, a Academia de Coimbra, a "bola" e a ditadura

Precisamente há 40 anos, em período de enorme contestação e luta estudantil na Academia de Coimbra, a equipa de futebol da Associação Académica da cidade e o Sport Lisboa e Benfica disputaram no Estádio Nacional a final da Taça de Portugal (1-2), dando azo a que se tivesse aproveitado o evento para uma significativa manifestação contra a ditadura. O “Público” de hoje refere-se ao acontecimento e o meu amigo LT não deixa também de o fazer. Várias notas:
  1. Ao contrário do que se diz, não se tratou da maior manifestação de sempre contra o regime e o que se passou no Estádio Nacional (estive lá) não teve grande repercussão no país. Penso que as maiores manifestações e comícios contra o regime terão sido, pelo que li, me contaram e lembro (era criança), as verificadas quando da campanha eleitoral de Humberto Delgado, até porque abarcaram todo o país (ou uma sua parte significativa) e quase todas as classes sociais. Também porque beneficiaram de um certo abrandamento da censura, habitual nos períodos “eleitorais”. Houve confrontos com a GNR e tanques nas ruas.
  2. A crise académica de 69 (eu era estudante universitário na altura), ao contrário da de 62, não teve repercussão muito significativa na Academia de Lisboa. Podemos dizer, isso sim, que ela funcionou mais como “pontapé de saída” para o pico da contestação estudantil do início dos anos 70, que terá culminado com a morte de Ribeiro Santos, quando as estruturas ligadas ao PCP começaram a perder a direcção da luta estudantil em favor das correntes maoístas e radicais.
  3. Curiosamente, estando José Hermano Saraiva, enquanto ministro da educação, ligado à repressão da contestação estudantil, devo dizer que guardava dele, enquanto reitor do Liceu D. João de Castro onde fui aluno nos antigos 6º e 7º ano, uma imagem liberal. De facto, e ao contrário do que acontecia no Camões dirigido com mão de ferro pelo tristemente célebre Sérvulo Correia (autenticamente, a expressão mais ultra da ditadura a nível escolar), no D. João de Castro de José Hermano Saraiva, até por se tratar de um intelectual, respirava-se um ambiente de maior modernidade e liberdade, mais “distendido”, numa escola onde o aluno, a sua personalidade, opinião e também responsabilidade eram tidas em conta. Raro nos tempos de então. Tendo-o por um “liberal” do regime, a sua actuação surpreendeu-me; mas admito estivesse muito condicionado.
  4. Ironicamente, a Associação Académica de Coimbra era uma equipa de futebol, de certo modo, protegida pelo regime (muitos dos seus responsáveis tinham sido estudantes da sua Universidade). Apenas conseguia alcançar níveis significativos de competitividade (chegou a ser vice-campeã e só não foi campeã porque no SLB jogava Eusébio), e a democracia veio a prová-lo, graças a duas leis iníquas que a favoreciam impedindo a livre transferência dos profissionais de futebol. A famigerada “lei da opção” e a “lei escolar”. Apesar disso, não conseguiu – e ainda bem -, embora de modo algo discreto, passar ao lado do ambiente de contestação estudantil que então se vivia em Coimbra.
  5. Estou em profundo desacordo com o LT quando ele afirma que a crise de 69 foi o Maio 68 português. Não me parece, embora possa ter apresentado um ou outro traço. Até porque tenho por opinião não poder ser o Maio 68 de Paris “isolável” de todas as mudanças que ocorrem no mundo desde o início do “rock and roll”, em 54, até a Woodstock, em 69. Num país periférico, atrasado e conservador, governado por uma ditadura, tivemos que esperar até 74 para que um terramoto que juntou o ambiente da libertação de Paris, o “rock and roll”, a luta pelos direitos cívicos, os “mods e os rockers”, a Primavera de Praga, o movimento "hippie", o Maio 68 e sabe-se lá mais o quê, abanasse o país de alto a baixo e o fizesse, embora aos solavancos e com vários encontrões pelo meio, entrar finalmente no caminho da modernidade.

4 comentários:

ié-ié disse...

Ó diabo, não vi o "Público". Talvez ainda o consiga amanhã.

Algumas discordâncias breves:

1 - Não fui eu que classifiquei a final da Taça como o maior comício pré-25 de Abril, adoptei-o, mas ao adoptá-lo estou obviamente de acordo com a asserção. Continuo a achar que foi a maior concentração anti-ditadura.

JC invoca Delgado. Contesto. São situações completamente diferentes. E há uma razão básica que distingue as duas situações: na campanha de Delgado, eu teoricamente podia vir para a rua com um cartaz "Viva a Liberdade!". No plano dos princípios e mesmo na legislação de então, eu não estava a cometer qualquer "crime". Tinha a "lei" pelo meu lado.
Se entrasse no Jamor com o mesmo cartaz, provavelmente já não assistia ao jogo.

2. Contesto igualmente o ponto 2. Por acaso, era dirigente estudantil em Lisboa à altura e cheguei a participar em diversas RIAs para acções concertadas. Apesar das rivalidades estudantis entre as duas Universidades, houve repercussão sim, houve solidariedade sim. E também houve Faculdades fechadas, como Direito, Técnico, etc.

3. Sem comentários. O meu Liceu foi em Coimbra. Mas a reforma do saraiva foi bem contestada!

4. No meu blogue também disse que a Briosa era privilegiada pela "lei escolar". Não tenho dúvidas sobre isso, mas lembro-me que quando esses jogadores chegavam a Coimbra eram "olhados de lado". Não faziam parte da mística... Se não fossem "porreiros", não se integravam. Confesso que não me lembro dessa "lei da opção". Não era a mesma que a "escolar"?

Apesar disso, é abusivo considerar que a Académica era "de certo modo, protegida pelo regime". Nada de mais falso. Nunca conheci uma direcção da Académica que fosse de direita. E mesmo o Saraiva retardava em homologar as direcções. Sim, os estudantes elegiam a direcção e depois tinha de ser homologada pelo Ministério. Como se passava no seu Benfica?

Ui, isto levava-nos muito longe.

Cheguei a ver um jogo em Coimbra com a polícia de choque fortemente armada no meio da malta.

OK, era esta a "protecção do regime".

5. Como compreendes, JC, classificar o "69 coimbrão" como o "Maio de 68 português" é, digamos,um facilitismo, pouco comparáveis em bom rigor político, mas não deixa de ser relevante em certo sentido, designadamente no que respeita à revolta estudantil contra os poderes constituídos. Só tínhamos tido uma, em 62, mas essa é que seria uma precipitação dar-lhe o cognome de "Maio 68 português".

LT

ié-ié disse...

Só mais uma coisa de que me esqueci, JC:

Quando escreves "duas leis iníquas (...) impedindo a livre transferência dos profissionais de futebol", acho que já estás com a mente nos dias de hoje.

LT

JC disse...

2. Não me parece que no Portugal de 58 fosse possível vir para a rua c/ um cartaz a dizer "Viva a Liberdade".Só teoricamente. Na chegada do Delgado vindo do Porto, a GNR carregou aos tiros (era criança de 9 anos e o meu pai levou-me à Baixa no dia seguinte a ver as marcas dos tiros nas paredes) e no comício do liceu Camões o Santos Costa pôs os tanques na rua e a GNR entrou a cavalo no "Monte Carlo". No Estádio Nacional, em 69, havia cartazes c/ palavras de ordem bem mais "subversivas" (podes ver nas fotos). O regime em 58 seria bem mais duro! Em 69 era já o estertor.
2. Sim, claro, mas nada comparável c/ 62 ou c/ Coimbra nesse ano. Ou c/ o que seguiria, de modo mais sistemático, em 72 e 73. Na minha faculdade (ISE), em 69,pouco se passou de especialmente relevante.
3. Não contesto que a reforma de J H Saraiva tenha sido repressiva. Apenas que isso me surpreendeu em função do que dele conhecia. Tenho gratas recordações do D. João de Castro por ele dirigido: uma lufada de ar fresco no que era o ambiente dos liceus da altura.
4. A lei da opção impedia um jogador de se transferir no caso do clube c/ o qual tinha contrato oferecesse 60% do valor das condições (chamam-se "luvas") propostas por outro.
5. Não contesto que durante as crises os jogos da AAC fossem altamente vigiados. E, claro, as direcções da AAC tinham de ser homologadas pelo ministério. Ambos sabemos como funcionava a ditadura. Mas penso - confirmarás ou não pois conheces o assunto mais de perto - , excepto durante os períodos mais críticos de contestação académica (e em Coimbra, a sério, só me lembro do de 69)as estruturas do futebol da AAC passavam um pouco ao largo de tudo isso.
Abraço e obrigado pelo comentário.

JC disse...

Desculpa, mas não percebo o que queres dizer com eu já estar com a mente nos dias de hoje a propósito das tais "leis iníquas". Só a partir do 25 de Abril as transferências passaram a ser livres. Ou estou enganado?