"The Kinks" - "Revenge". Indicativo do programa "Em Órbita" .
No dia 1 de Abril de 1965, um pouco depois das sete horas da tarde, Pedro Castelo anunciava, após alguns acordes do instrumental “Revenge”, dos Kinks, composto por Ray Davies e Jimmy Page (que não era membro do grupo mas que levaria, mais tarde, os Led Zepelin à glória) na frequência modulada (uma novidade) do Rádio Clube Português, “Em Órbita”: “um programa feito por nós e dito por mim”. Não sei se a frase foi dita logo na abertura do primeiro programa, ou mais tarde por Cândido Mota o seu apresentador nos anos subsequentes, mas sei que se tornou frequente, ao longo dos anos, e é isso que importa. Uma frase que funcionava como se de uma assinatura, uma síntese se tratasse, encapsulando em si um novo conceito ou parte dele: não estávamos perante um programa que promovia “estrelas da rádio” (muito comuns na época), quer fossem os seus autores ou o apresentador (na altura dizia-se “locutor”), mas anunciava, isso sim, uma certa radicalidade, um corte com a tradição de falsa intimidade com o ouvinte, tantas vezes expressa, pelos chamados “locutores da voz doce” e suas companheiras de emissão, no “amigos ouvintes, muito boa noite; somos a vossa companhia durante estes próximos minutos”.
Radicalidade, intransigência, fidelidade aos princípios definidos pelos seus autores (Jorge Gil, João Manuel Alexandre e Pedro Albergaria, entre outros) sem qualquer tentativa de ir “ao encontro do gosto do público”, era este o conceito, o que só era “permitido” por se tratar da rede de frequência modulada, algo que, ao tempo, era uma novidade que só um número limitado de receptores possuía, o que a tornava numa frequência elitista e o custo da respectiva emissão, e da publicidade que a mantinha, substancialmente mais baixos e acessíveis a um maior número de anunciantes. Aliás, até no caso da publicidade o “Em Órbita” foi de certo modo pioneiro, pois, se bem lembro, tinha um patrocínio único seleccionado pelos próprios autores do programa com “spots” adaptados ao seu “mood and tone”, o que, longe de ser um acaso, era essencial à apresentação da sua unidade conceptual.
Mas a sua marca mais identificativa foi o facto de ter sido o primeiro programa de rádio a apenas “passar”, de modo consistente e intransigente no gosto, música popular anglo-americana, "rock &roll", a música que mudou o mundo e era considerada na altura, no Portugal ultraconservador da ditadura, como “música e batuque de pretos” (sim, no Portugal “multirracial”), pecado original que conduzia directamente à depravação dos costumes, diluição da moral e delinquência juvenis. Aliás, o que era curioso verificar era o facto da esquerda comunista e a ditadura salazarista terem perante o "rock & roll" uma atitude idêntica, embora com propostas diferenciadas: a música de variedades, para o regime, e a canção de texto francesa para a esquerda comunista.
Essa radicalidade, esse “desprezo” (chamemo-lhe assim) pelo gosto das maiorias substituído pelo gosto dos seus autores, essa “arrogância” assumida (sim, não há mal nenhum nisso) ajudou a formar e a formatar o gosto musical (e não só) de uma geração, mas foi muito para além disso: contribuiu para a criação, em muitos adolescentes de então onde felizmente me incluo, de uma personalidade e um novo modo ver e entender o mundo. Foi esta “atitude” que levou Jorge Gil a abrir uma excepção para chamar a atenção para José Afonso, ainda no tempo das baladas de Coimbra, e a “passar” a “Lenda de El-Rei D. Sebastião”, do Quarteto 1111, na altura uma pedrada no charco da música portuguesa. Foi também essa atitude que levou o “Em Órbita a eleger, num dos seus anos de emissão, “Strangers In The Night”, de Frank Sinatra, um dos temas mais “passados” nesse ano nos vários programas de rádio, como a pior canção do ano, para grande escândalo da maioria e gozo dos autores do programa e dos seus indefectíveis. Foi, ainda, essa mesma forma de encarar a vida e o mundo que levou o mesmo Jorge Gil a mudar a orientação do programa quando concluiu que as premissas que tinham presidido ao seu conteúdo e orientação musicais iniciais já se não mantinham, dado que a importância sociológica e musical do "rock & roll" como elemento gerador da inovação e da mudança estava claramente a entrar em regime de fade out. A partir daí “Em Órbita” dedica-se à divulgação e música antiga e barroca, quer enquanto programa de rádio quer como organizador de concertos. Mas o rigor, a inovação, a intransigência e a qualidade das propostas não mudam. É, isso sim, o tipo de música que muda para que a concepção no essencial se mantenha.
Foi mais do que um programa de rádio: foi a descoberta de uma concepção, de uma forma de encarar e tentar viver a vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário