"Doce" - "Amanhã de Manhã"
Quando se inicia a década de oitenta do século XX, os ecos do PREC são cada vez mais longínquos, e o rescaldo do 25 de Novembro está em fase de dissipação. O tempo em que as dissenções políticas tinham divido famílias e destruído amizades, forjando outras talvez menos duradouras e mais ditadas pela conjuntura, em que a proximidade vivêncial não era ditada por personalidades, classes sociais ou formação educacional e intelectual, mas pela afinidade ideológica e partidária, caminhava para o seu fim.
A nível político, a direita da AD tinha alcançado o poder e a inabilidade política de Sá Carneiro propunha um general politicamente “suspeito” como candidato presidencial, talvez pensando que os tempos em que Melo Antunes tinha salvo, com apenas uma frase, um regime plenamente democrático já não se repetiriam. Eanes renovou o seu mandato, pôs a tropa nos quartéis e a revisão constitucional de 1982 (Soares, uma vez mais) abriu caminho à CEE.
A música que tinha marcado uma década (a de setenta), a chamada de “intervenção”, dos “pais fundadores” da música popular portuguesa, e a da revolução na música ligeira protagonizada nos Festivais da Canção por muitos nomes ligados, conjunturalmente ou não, ao PCP, como Ary dos Santos, Tordo, etc, estava em refluxo. A chamada música “pimba”, num país ainda com grandes manchas de ruralidade, restringia-se, envergonhadamente, às feiras de província e às cassetes pirata. Num país com televisão a “preto e branco”, aquela que tinha sido, talvez, a última manifestação de cultura de massas e, simultaneamente, de combate político no rescaldo da revolução de Abril (“A Visita da Cornélia”), entre a esquerda de “Pitum” e José Fanha (entre outros) e a direita de Gonçalo Lucena e Rui Guedes, tinha obrigado a RTP a contorcer-se para dar a vitória a um “moderado” que não deixou rasto nem nome. Em 1980, a televisão a cores anunciava um novo Portugal e uma nova era, mais moderna, cosmopolita, urbana e suburbana. Uma sociedade mais aberta e interclassista. Mais europeia, enfim.
É este “caldo de cultura” que irá gerar a emergência de novas realidades a nível tanto da música popular como da música ligeira, e até uma maior fusão entre elas. A formação e autonomização de uma cultura suburbana - um pouco á semelhança do acontecido com o movimento “mod” londrino dos anos 60 - protagonizada pelos filhos dos seus primeiros habitantes, já nascidos junto à cidade ou já sem memórias do mundo rural dos seus pais, irá fazer nascer aquilo que ficou conhecido como o “novo rock português”, onde a influência anglo-saxónica do movimento “punk” – mas não só – é notória. A emergência do embrião daquele que viria a ser o movimento LGBT, assumindo uma certa marginalidade urbana, gera um dos nomes mais interessantes da música popular portuguesa de sempre e a sua morte prematura, vítima de AIDS, um movimento de culto. A nível “mainstream”, perante o quadro acima descrito e a chegada à adolescência de quem, então criança, não tem memórias de Abril, estão criadas as condições políticas e sociais para que a música “pop”, despretensiosa e tendo como único objectivo ganhar dinheiro através do puro divertimento (sem mais), mas já com um profissionalismo e rigor marcados pela chegada de Portugal ao capitalismo concorrencial e à modernidade europeia, faça o seu caminho e preencha o espaço que em muitos países é o seu. Nada de surpreendente que esse lugar seja ocupado pelas “Doce”, talvez, em Portugal, o primeiro grupo concebido e criado por um produtor (tal como as Chiffons, Cookies, Crystals, etc, vinte anos antes nos USA) na base de um conceito que tinha a ver com as condições da época e vai marcar a imagem do grupo: abertura europeia, degelo político, televisão a cores, disseminação do erotismo e dessacralização do sexo. Será a conjugação de todas estas condições que vai proporcionar o nascimento do grupo e potenciar o seu enorme e merecido sucesso.
Nota: Devo pedir desculpa pela má qualidade do vídeo aqui apresentado, mas, pelo que acima afirmei, acho que as “Doce” são indissociáveis da imagem e o facto de se tratar de uma sua presença no “Tal Canal”, outro elemento da “cultura de massas” que simbolizou a passagem de Portugal à era da modernidade, tornava-o incontornável.
A nível político, a direita da AD tinha alcançado o poder e a inabilidade política de Sá Carneiro propunha um general politicamente “suspeito” como candidato presidencial, talvez pensando que os tempos em que Melo Antunes tinha salvo, com apenas uma frase, um regime plenamente democrático já não se repetiriam. Eanes renovou o seu mandato, pôs a tropa nos quartéis e a revisão constitucional de 1982 (Soares, uma vez mais) abriu caminho à CEE.
A música que tinha marcado uma década (a de setenta), a chamada de “intervenção”, dos “pais fundadores” da música popular portuguesa, e a da revolução na música ligeira protagonizada nos Festivais da Canção por muitos nomes ligados, conjunturalmente ou não, ao PCP, como Ary dos Santos, Tordo, etc, estava em refluxo. A chamada música “pimba”, num país ainda com grandes manchas de ruralidade, restringia-se, envergonhadamente, às feiras de província e às cassetes pirata. Num país com televisão a “preto e branco”, aquela que tinha sido, talvez, a última manifestação de cultura de massas e, simultaneamente, de combate político no rescaldo da revolução de Abril (“A Visita da Cornélia”), entre a esquerda de “Pitum” e José Fanha (entre outros) e a direita de Gonçalo Lucena e Rui Guedes, tinha obrigado a RTP a contorcer-se para dar a vitória a um “moderado” que não deixou rasto nem nome. Em 1980, a televisão a cores anunciava um novo Portugal e uma nova era, mais moderna, cosmopolita, urbana e suburbana. Uma sociedade mais aberta e interclassista. Mais europeia, enfim.
É este “caldo de cultura” que irá gerar a emergência de novas realidades a nível tanto da música popular como da música ligeira, e até uma maior fusão entre elas. A formação e autonomização de uma cultura suburbana - um pouco á semelhança do acontecido com o movimento “mod” londrino dos anos 60 - protagonizada pelos filhos dos seus primeiros habitantes, já nascidos junto à cidade ou já sem memórias do mundo rural dos seus pais, irá fazer nascer aquilo que ficou conhecido como o “novo rock português”, onde a influência anglo-saxónica do movimento “punk” – mas não só – é notória. A emergência do embrião daquele que viria a ser o movimento LGBT, assumindo uma certa marginalidade urbana, gera um dos nomes mais interessantes da música popular portuguesa de sempre e a sua morte prematura, vítima de AIDS, um movimento de culto. A nível “mainstream”, perante o quadro acima descrito e a chegada à adolescência de quem, então criança, não tem memórias de Abril, estão criadas as condições políticas e sociais para que a música “pop”, despretensiosa e tendo como único objectivo ganhar dinheiro através do puro divertimento (sem mais), mas já com um profissionalismo e rigor marcados pela chegada de Portugal ao capitalismo concorrencial e à modernidade europeia, faça o seu caminho e preencha o espaço que em muitos países é o seu. Nada de surpreendente que esse lugar seja ocupado pelas “Doce”, talvez, em Portugal, o primeiro grupo concebido e criado por um produtor (tal como as Chiffons, Cookies, Crystals, etc, vinte anos antes nos USA) na base de um conceito que tinha a ver com as condições da época e vai marcar a imagem do grupo: abertura europeia, degelo político, televisão a cores, disseminação do erotismo e dessacralização do sexo. Será a conjugação de todas estas condições que vai proporcionar o nascimento do grupo e potenciar o seu enorme e merecido sucesso.
Nota: Devo pedir desculpa pela má qualidade do vídeo aqui apresentado, mas, pelo que acima afirmei, acho que as “Doce” são indissociáveis da imagem e o facto de se tratar de uma sua presença no “Tal Canal”, outro elemento da “cultura de massas” que simbolizou a passagem de Portugal à era da modernidade, tornava-o incontornável.
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