terça-feira, outubro 24, 2006

Marie Antoinette e Sofia Coppola


Ora aqui vamos, pois, ao filme de Sofia Coppola, conforme prometido e depois de visão obrigatória. Algumas questões prévias a clarificar:

1. Não se trata de um “drama histórico” ou de um filme de época – e por isso não pode ser analisado apenas enquanto tal -, mas, isso sim, de um tema que em nada é diferente dos anteriores filmes da autora (“As Virgens Suicidas” e “Lost in Translation”): os “desajustamentos”, os “síndromas” de “não pertença” do fim da adolescência, princípio da idade adulta. Era assim com as irmãs Lisbon de “As Virgens Suicidas”, desajustadas de uma família opressiva e de um ambiente conservador de uma pequena cidade americana, e era assim com “Lost in Translation”, com uma Scarlett Johansson desajustada de um casamento, numa terra estranha que ela dificilmente entende, ou um Bill Murray em crise de identidade no limiar da “terceira idade”. Desta vez coube a “Marie Antoinette”, rainha de França”, e não a uma personagem anónima, incarnar o papel, e aqui começam as complicações. E a pergunta será: até que ponto (e em que medida), não se tratando de um filme histórico mas lidando com personagens e situações que o são, esse rigor histórico pode ser, digamos, como que "ajustado", acentuando ou aligeirando facetas do perfil psicológico dos personagens em função do objectivo que se pretende atingir? Mas também há lugar a uma afirmação: é exactamente esse facto (o não se tratar de um filme histórico) que “obriga” Sofia Coppola a utilizar como base uma biografia (segundo dizem – não a li), de Antonia Fraser, “pouco rigorosa, popular e feminista, muito de acordo com o ar do tempo” (nas palavras de Vasco Pulido Valente no “Público”).


2. O casamento por amor é uma “criação” burguesa. A aristocracia casava por interesses políticos e/ou patrimoniais, e o povo para gerar filhos para contribuírem com o seu trabalho para o sustento doméstico (a palavra “proletário” vem de “prole”), por isso escolhendo companheiros(as) em função de capacidade de gerar filhos e defender a família. Em ambos os casos, existe a necessidade de casar cedo para que a mulher possa estar casada o maior número possível de anos durante a sua idade fértil, mais ou menos entre os 12 e os 40 anos ou menos porque se morria cedo, o que acontecia também com as crianças. Logo (ver post anterior sobre o mesmo tema), não faz qualquer sentido abordar o caso de Marie Antoinette do ponto de vista emocional, burguês, ou do ponto de vista da idade que tinha (14 ou 15 anos) quando do seu casamento. Por exemplo, e falando de um acontecimento da História de Portugal, o casamento “por amor” de D. Pedro I com Dona Inês de Castro pode ser visto, à luz dos valores e “modelos” vigentes na época, de facto, como uma “traição” aos interesses que um rei se obrigava a defender enquanto tal. Tudo o resto são as nossas “construções” burguesas posteriores. Assim sendo, ter amantes era como uma extensão natural, uma consequência dos casamentos políticos ou “patrimoniais”, não podendo a esse facto ser atribuída a carga negativa que lhe concede a moral burguesa dos nossos dias.

Having said this, vamos a factos:

1. Toda a primeira parte do filme tem uma clara carga política, embora eu não esteja certo do modo como em certas sequências isso possa transparecer para a maioria dos espectadores portugueses, razoavelmente pouco preparados, penso, na matéria (a História dada no secundário é maioritariamente uma fraude) e demasiado viciados nas revistas cor de rosa. Algumas cenas ajudarão à confusão. Toda a cerimónia da chegada à fronteira francesa tem um peso político indiscutível, quando Marie Antoinette se “despoja” de tudo o que é austríaco (até do nome) e agradece a um enviado do rei e do "delfim" lhe ter permitido encontrar a felicidade através do casamento, ao que este retribui agradecendo-lhe a ela ter permitido a felicidade da França. A cena é suficientemente ambígua para não se perceber se Marie Antoinette se refere à sua felicidade pessoal pelo “amor”, o que seria inverosímil, se por cumprir os objectivos políticos que lhe são destinados e que veremos com o fluir do filme a preocupam e ocupam. Menor ambiguidade, contudo, ressalta dos problemas da não consumação do casamento, onde me parece claro que a preocupação da então “dauphine” é apenas e só a questão política tout court. Já mais ambíguas me parecem ser as sequências do “vestir” e da noite de núpcias, que poderão induzir nos espectadores, aos olhos de hoje, não mais que a noção do ridículo e da adolescente “diferente” colocada perante o tal ambiente opressor e desconhecido, tão caro a Sofia Coppola, (no início do filme a futura rainha de França é alertada pela imperatriz Maria Teresa para as diferenças entre a corte de Versailles e de Viena), diluindo a sua carga política. Como a função da “dauphine” é essencialmente gerar um herdeiro, assegurando a continuidade dinástica e a consumação da aliança política que o casamento consubstanciava, estamos, também aqui, perante um acto eminentemente político, daí a cerimonial como a benção do leito conjugal e o acompanhamento dos noivos até ele por parte do rei e da corte. Já a cerimónia do “vestir” é apenas algo que permite uma afirmação de hierarquias, do acesso à "dauphine" por parte dos diversões escalões da aristocracia francesa, e a oportunidade para a realizadora, perante a incomodidade sentida por Marie Antoinette, afirmar as diferenças entre as duas cortes, acentuando, através disso, o tal sentimento de “desajuste”.


2. Contudo, toda a carga política se dilui de modo notório a partir da maternidade, o que faz algum sentido (Marie Antoinette tinha assim assegurado a sua principal função política), acentuando a vertente de jovem despreocupada e gastadora, frívola mas por vezes também entediada com a futilidade da corte. Sabemos que não se terá passado exactamente assim, e que a sua intervenção política não foi inexistente, mas é isto que permite a Sofia Coppola desenvolver o seu tema recorrente da “não pertença”. Permite-lhe também abrir o caminho para os acontecimentos de 1789, mas sobre isso há que acrescentar ainda algo que no filme não é claro:


A. A futilidade e a frivolidade não eram exclusivos da corte de Versailles. Toda a aristocracia, mesmo até aos nossos dias, tende a evidenciar frequentemente algumas dessas mesmas características, já que a sua continuidade e riqueza está assegurada pelo nascimento e não pelo seu "valor" intelectual. No entanto, existe algo que distingue Versailles e teve o seu papel histórico. A aristocracia francesa vivia na corte, em Paris e Versailles, enquanto a inglesa, por exemplo, vivia a maior parte do ano no campo. Isto determina, desde logo, algumas diferenças, como uma forma de vestir e de viver mais opulentas (o chique e coquette) na aristocracia francesa (ninguém, num ambiente de campo, poderia vestir-se e comportar-se como em Versailles), bem assim como o seu carácter mais frívolo e distanciado da realidade. Por outro lado, ao contrário do que parece pretender Sofia Coppola ao apresentar o rei frequentemente em caçadas, não se pode, de modo algum, incluir a caça no ror das futilidades. A caça era, para a aristocracia, o treino para a guerra em tempo de paz , e a política e a guerra eram os seus deveres, a sua profissão face aos direitos e regalias que lhe eram atribuídos pelo nascimento.


B. A intriga política é comum a... todos os ambientes políticos, tal como acontece hoje em dia nos bastidores do Parlamento, e a corte era-o por excelência. Nada nessa intriga, ao contrário do que parece pretender Sofia Coppola, remete para o campo da futilidade, embora o possa parecer quando reveste esse carácter aparente nas conversas entre as mulheres, que não têm acesso directo às decisões e por isso se servem politicamente da crítica social e do gossip.


C. Quanto à utilização de música “pop”, nada a dizer em desabono. Antes pelo contrário: parece-me essencial no acentuar de alguma situações, a cena do baile de máscaras, por exemplo.

Em resumo, o filme é suficientemente ambíguo para fazer o seu caminho. Quanto à verdade histórica, saio como entrei, ou não estivéssemos perante algo que não é de todo um filme “histórico”: Marie Antoinette é um erro de casting; alguém suficientemente mal preparado (era a filha mais nova) para o papel que lhe destinam numa corte muito diferente e num país em grave crise política e à beira do acontecimento mais determinante da sua História (e um dos mais importantes da História do mundo). Era a mulher errada no lugar errado. Tão mal preparada, aliás, quanto o seu marido, com a diferença que é austríaca, o que acentua os antagonismos... Por isso é ela que vai ser considerada o inimigo principal (é estrangeira e de um país tradicionalmente rival). Também por esse motivo acabam “engolidos” por essa própria História. Quantas vezes já a isso assistimos?

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