domingo, novembro 18, 2012

As meias-solas de José Manuel Fernandes

Bom, claro está que não vou contra-argumentar com os que pensam (pensarão mesmo?) que a crise foi essencialmente causada por todos, em média, consumirmos mais 10% do que produzíamos e que bastam alguma frugalidade e umas meias-solas para resolver, ou pelo menos aligeirar, o assunto. Os pobres de espírito lá foram abençoados por Cristo que para eles propôs o reino dos céus; e Cristo lá teria das suas razões. Além disso, há sempre aquela história, meio anedótica, de existirem dois bifes (que querem, o bife está na moda) para duas pessoas, uma delas comer ambos os bifes e, em média, cada um ter comido um. Enfim... estatística. Mas vamos lá então a coisas mais comezinhas - frívolas, se quiserem - de modo aos pobres de espírito entenderem sem ficarem demasiado baralhados e sem perderem o adquirido direito divino ao reino dos céus. E por pontos, para perceberem melhor...
  1. Não sei se sabem os pobres de espírito que solas novas nuns sapatos custam entre €35 e €40 (e não estou a falar de mandar uns Church para Northampton...). Foi quanto paguei pelas últimas no meu sapateiro, por sinal bem recomendável e sito em Lisboa num "vão de escada" da Av. António Augusto de Aguiar. Está bem de ver que mandar colocar solas nuns sapatos só se justifica para uns sapatos de boa qualidade (e se ainda estiverem em muito bom estado geral) e tais sapatos, para homem, custam sempre acima de €130/140. Pergunto-me quantos portugueses compram sapatos por esse preço e que influência tiveram na dívida. Explicarei pois aos pobres de espírito que a "enorme" maioria das pessoas, a que compra sapatos a €30/50, não manda colocar solas nos sapatos porque, pura e simplesmente..., não vale a pena. Estamos, pois, perante uma decisão racional e não perante um qualquer esbanjamento.
  2. Ah!, os remendos, ou a reutilização da roupa... Não sei muito bem a que tipo de reutilização da roupa os pobres de espírito se referem, mas espero não se estejam a referir aos remendos que se mandam colocar nos encerados Barbour... Mas vamos lá ver, um pouco mais a sério... Em primeiro lugar, pela profusão de lojas de arranjos de roupa que por aí nasceram e prosperam (e ainda bem), não me parece os portugueses não recorram à tal reutilização da roupa. Numa economia de mercado, se tal não acontecesse muitas já teriam falido e não é isso que vejo, mas bem o seu contrário. Remendos? Enfim, não estou a ver alguém, mesmo os pobres de espírito, a recomendar os portugueses voltem ao século XIX e usem fatos-macaco remendados e fundilhos nas calças. Dantes existiam a cerzideiras (e ainda algumas sobrevivem, felizmente), mas a última vez que recorri a uma, aqui há uns nove anos, tal custou-me a "módica" quantia de €100, o que, mais uma vez, só se justifica se estivermos perante um fato de muito boa qualidade e esse custa sempre acima de €500/600 (no mínimo). Mais uma vez, não me parece muitos portugueses comprem fatos a esse preço e, portanto, não mandar cerzir um buraco num fato ou numa numa peça de roupa de preço médio ou baixo será sempre uma decisão racional. É possível andar hoje decentemente vestido por pouco dinheiro, felizmente, mas parece tal não cai bem aos pobres de espírito.
  3.  Quanto aos "pequenos electrodomésticos", os pobres de espírito já experimentaram mandar arranjar um, ver quanto custa e depois verificar qual o preço de um novo na Worten ou no MediaMarket? Em termos gerais e na maioria dos casos, se não estivermos a falar de um aparelho de televisão "modernaço", os pobres de espírito verificarão facilmente que é mesmo melhor deitar fora e comprar novo, por muito que os ecologistas nos excomunguem. Mais uma decisão racional, portanto.
  4. Ah!, as luzes acesas e a avó do José Manuel Fernandes, claro. Bom, apagar as luzes que não são necessárias não é por sistema uma má decisão. Mas convém lembrar que no tempo da infância de JMF, que não será muito distante da minha, era a iluminação que contribuía, pelo menos em Lisboa, para a maior parte do consumo de energia eléctrica doméstica. Hoje, não só existem lâmpadas de baixo consumo que permitem poupar significativamente o consumo de energia destinada à iluminação, como o aquecimento e a profusão electrodomésticos contribuem bem mais para o gasto de energia eléctrica do que meia dúzia de lâmpadas. Por vezes, é muitas vezes bem melhor decisão deixar uma luz acesa do que passar o tempo a acender e apagar uma fonte de iluminação, contribuindo desse modo para deteriorar "arrancadores" e interruptores, peças frágeis. Significa isto que deixar por vezes uma luz acesa por alguns minutos não só pode não ser uma decisão que signifique esbanjamento como pode ser, também ela, uma decisão racional.
  5. Por último... Os portugueses gastam muito dinheiro em cafés, pastelarias e restaurantes. Talvez demasiado, pelo menos para os padrões norte-europeus e para o que acho seria desejável. É verdade, mas não são só os portugueses: de um modo geral tal acontece com os povos do sul da Europa e tem a ver com hábitos culturais que não estarão longe de serem potenciados por um clima propício, muitas horas de luz durante todo o ano, casas tradicionalmente pouco confortáveis, civilização urbana recente e por aí fora. Tradicionalmente, também o baixo custo dos produtos consumidos "on trade", isto é, nos estabelecimentos hoteleiros, se comparado com outros países europeus e com as respectivas médias salariais nacionais (lá está a malfadada estatística) ajudou a implantar tal realidade. Digamos que uma refeição ou um café fora de casa são mais baratos em Portugal do que na maioria dos países europeus, se comparados com os respectivos salários médios. Mas também todos sabemos, mesmo os mais pobres de espírito, que os hábitos culturais levam décadas a mudar, e os países do "socialismo real" e os que por eles se deixaram durante longos anos  "enfeitiçar" bem sabem que assim é, apesar de Gulags, Cambodjas e Grandes e Queridos Líderes os terem tentado mudar à força. Fica o aviso à actual "vanguarda" que nos governa e aos radicais, ex- dirigentes de grupos m-l da "esquerda ululante" (a expressão é de JMF), seus mais ferozes apoiantes.
E fiquemo-nos por aqui, não sem antes lembrar a JMF que cinco copos de dentes diferentes para cinco irmãos, e levado o seu raciocínio estrutural às últimas consequências, talvez constituísse um esbanjamento e talvez fosse, isso sim, mais adequado e consentâneo com a frugalidade que nos propõe usar um único copo e lavá-lo entre cada utilização. Boa?

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