A proposta de governo de concessionar o serviço público de rádio e televisão a privados trouxe de novo à ordem do dia a discussão sobre qual o conteúdo desse mesmo serviço público, tornando-se comuns afirmações, não destituídas de lógica e bom-senso, de que a definição de tal conteúdo seria o primeiro e indispensável passo para qualquer decisão futura sobre o grupo RTP/RDP. Certo. Mas deixemos um pouco de lado os chamados "grandes princípios", muitas vezes demasiado abstractos, e, embora não sendo eu especialista na área da comunicação social nem nunca tendo sido jornalista, tentemos analisar alguns dos problemas práticos que qualquer decisão nesse campo terá de enfrentar e resolver.
- Em primeiro lugar, a quem caberá essa definição de "serviço público"? Ao governo? À ERC? A uma qualquer comissão "ad-hoc" de nomeação governamental, tipo "conselho de sábios"? À Assembleia da República? E qual o papel da Presidência da República no projecto? E depois, quem fiscalizará o seu cumprimento e com que meios? Nada de inultrapassável, mas um problema à partida.
- Não sendo de opinião que os consensos tenham sempre inegáveis vantagens face às rupturas, penso estarmos aqui perante um assunto que, pela sua sensibilidade, pelo seu carácter estrutural e constitucional e pelo facto de nem mesmo entre os partidos do governo existir uma ideia comum, mereceria o tal "amplo consenso", pelo menos dos chamados partidos do "arco governamental", evitando o hábito tão português do faz/desfaz com os custos inerentes. Caso contrário estaremos perante uma questão estrutural resolvida por uma pequena "vanguarda", mais ou menos iluminada (o pequeno grupo actualmente dominante no PSD e núcleo duro do poder) e sob suspeição (ou bem mais do que isso) de decidir em causa própria de alguns dos seus dirigentes e apoiantes externos. Assim sendo, estamos já aqui perante um problema com contornos bem mais graves.
- Num assunto ideológica, cultural e vivencialmente tão carregado e extremado e onde se movem interesses vários, mais ou menos venais e contraditórios, uma coisa é a definição dos grandes princípios ("defesa da língua portuguesa", "divulgação dos valores históricos e culturais", "defesa do pluralismo de opinião", e outros do género). Outra, bem diferente, a sua transformação em actos e conteúdos concretos. Exemplos? Muito simples: assegurar a transmissão dos jogos de futebol da selecção nacional e das equipas portuguesas nas provas da UEFA é ou não serviço público? Outro? A "defesa e promoção da língua portuguesa" é assegurada como? Através de um programa como aquele bem interessante do qual Diogo Infante era apresentador ou de que outra forma? E caberá no conceito de "serviço público" a divulgação e apoio ao cinema português e a divulgação de clássicos do cinema internacional? E a apresentação diária de uma "agenda cultural"? E a música popular portuguesa, a ópera, a música erudita e o teatro português, clássico e de vanguarda? Mais ainda, o conceito de "serviço público" deverá incluir indicações claras sobre o conteúdo e alinhamento da informação noticiosa, evitando que os primeiros quinze minutos sejam preenchidos com noticiário tablóide (crimes, desastres, "fait-divers", etc)? Poderíamos continuar por aqui fora, mas penso já existe matéria suficiente para nos fazer pensar sobre as talvez insuperáveis dificuldades a enfrentar.
- Num tempo em que o desenvolvimento das novas tecnologias obriga os "media" a constantes mudanças (também de conteúdos) e a enorme flexibilidade, faz sentido definir o que se entende por "serviço público" de forma mais ou menos permanente e pouco maleável? A sua concessão a um privado é compatível com uma actualização constante do que cabe no conceito? E é possível assegurar que um operador privado não tenha uma interpretação "criativa" (como é comum acontecer em Portugal) das obrigações decorrentes do cumprimento do "serviço público" e acabe por o desvirtuar nas intenções perante, no mínimo, o encolher de ombros da entidade reguladora?
- Por último, é possível um operador privado, que tem de defender, obviamente, os seus legítimos interesses, interessar-se por um projecto que o obrigue a cumprir a agenda de um verdadeiro serviço público de rádio e televisão, com os constrangimentos daí inerentes, sem o transformar, desvirtuando-o com a conivência do Estado, numa verdadeira caricatura? Por algum motivo, e não me parece apenas por razões históricas, não me lembro tal figura exista na Europa e é bom que desçamos à terra e comecemos a pensar um pouco nestas coisas.
Nota final: a RTP tem um valor não tangível, uma determinada "brand equity". Já alguém levou isso em consideração? Acham que já alguma vez um qualquer governo britânico se lembrou de concessionar a BBC?
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