Em Portugal, durante a ditadura e até mesmo já depois da democracia institucionalizada ("old habits die hard") muitos actos de censura foram tentados e muitos outros perpetrados sob a alegação de os acontecimentos ou assuntos em questão "ofenderem gravemente as convicções religiosas da grande maioria do povo português". Eu sempre me senti ofendido, nas minhas profundas convicções de não-crente, com tal argumentação, como também acho interessante nunca argumento semelhante tenha sido usado em relação às convicções culturais, estéticas, literárias, desportivas, e assim sucessivamente, da maioria do povo português. Por exemplo, os dislates e "dotes" declamatórios do Sr. Pinto da Costa ofendem gravemente as convicções desportivas e culturais da grande maioria do povo português, e nunca ninguém se lembrou de o mandar calar nas suas diatribes ou de o impedir de declamar Régio, nem mesmo a Srª Dona Maria Barroso ou os eventuais descendentes de João Villaret, que teriam toda a razão para o fazer invocando a decência e o bom-gosto. A questão é que o apelo à religiosidade, remetendo-nos para o além e para a morte, infunde sempre um certo temor reverencial, enquanto o ateísmo é coisa bem mais das lides terrenas. Por outro lado, essa coisa da separação entre a Igreja e o Estado foi de gestação lenta e dolorosa, feita de avanços e recuos, a cuja habituação muitos ainda teimam a recusar-se.
O que talvez já não esperasse, mas bem vistas as coisas não me cause talvez assim tanto espanto, é ver uma juíza de um país governado durante uns bons setenta anos por um partido comunista, por definição inimigo da religião e da Igreja, oficialmente ateu, fazer apelo, apenas uns vinte e picos anos após a queda do regime, aos supostamente ofendidos "sentimentos religiosos dos crentes" para justificar a pena de prisão infligida a umas simpáticas raparigas membros de um grupo "punk-rock". Não sei se a ideia terá sido de uma qualquer Zita Seabra que por lá exista (que las hay!...), mas, independentemente das razões da juíza e também da "tenebrosa ameaça" que as raparigas podiam constituir para a ditadura de Putin/Medvedev ou que esta terá tido oportunidade de invocar num país onde a independência do poder judicial deverá assemelhar-se a uma espécie de ficção, será caso para reafirmar que, também por lá, ou agora especialmente por lá já que por cá bem nos custaram democracia e liberdade, "old habits die hard". Mesmo.
2 comentários:
Grande Post JC.
Grande erro do Putin,no meu humilde entender!!!
Os ditadores, por definição, acham que nunca erram, Karocha. Mtªs vezes, engano o deles. E obrigado pelo elogio.
Enviar um comentário