sexta-feira, julho 18, 2008

"Conta-me Como Foi", Carlos Mendes e o "Verão" (2)

Carlos Mendes - "Verão" (José Alberto Diogo-Pedro Osório)
Nos anos 60 Portugal era um país pobre, em grande parte rural, vivendo sob uma ditadura retrógrada que o tornava ainda mais periférico, com uma classe operária cujo grande objectivo era a luta contra a falta de liberdade sindical que lhe tolhia as possibilidades de alcançar melhores condições de vida e uma classe média fraca em número e poder de compra. Com uma guerra nas colónias que tudo condicionava. Não admira, por isso, a quase ausência de reflexos e repercussões internas daquilo que se passava no mundo. No que diz respeito às novas formas de música popular, e apesar dos esforços de alguns pioneiros, ele próprios, na sua maioria, oriundos da classe média urbana e mais identificados com os “teenage idols” e as versões mais soft do "rock" instrumental, de origem britânica, do que com o rock “puro e duro”, tudo ficou demasiado circunscrito aos concursos Yé-Yé (a influência da cultura francesa dominava), às festas de finalistas e a uma ou outra edição, mais ou menos esporádica, de alguns nomes com mais talento e/ou mais sorte (“Conchas”, Daniel Bacelar, o simpático Zeca do Rock, “Conjunto Mistério” e pouco mais). A Televisão, de censura e canal único, colocava os entraves necessários às aspirações desses jovens, que raramente os conseguiam “furar”, e verdade seja dita que o talento também não abundava. Acresce que em Portugal não existiam rádios locais e editoras independentes, responsáveis na América pelo boom do "rock na roll", muito menos um circuito de bares com música “ao vivo” (o que seria, nas condições de então!...) e, por tudo o que se disse, o mercado era assim quase inexistente.

Bom, mas vamos lá ao “Festival da Canção”.

Não me vou referir, de um ponto de vista mais ou menos sociológico, à importância da televisão nos anos sessenta: haverá que conheça muito melhor o assunto para sobre ele se pronunciar, mas era algo que em Portugal tinha apenas nascido em 1957 e constituía o entretenimento familiar preferencial. Quanto ao Festival, acontecimento único no ano televisivo, que faz de 1968 um ano tão único? Pois é a primeira vez que alguém quebra, a esse nível, a hegemonia daquilo a que João Paulo Guerra chamou de “nacional-cançonetismo” (que em Portugal se consubstanciava predominantemente no “Centro de Preparação de Artistas da Rádio, da Emissora Nacional), que não mais era do que a música ligeira do “passado”, com a qual a nova música popular, a nova geração, veio estabelecer uma ruptura. Mais, essa ruptura é feita através da vitória de alguém claramente oriundo do movimento Ié-Ié, com um tema que, embora “suave” e “melódico”, também com ele podia ser claramente identificado nas suas origens, até na imagem e modo de interpretar do então jovem Carlos Mendes. Mesmo na orquestração, com ao destaque dado ao orgão e à bateria. Se formos analisar os festivais anteriores, em todos eles excepto no ano de 1967 com a vitória de Eduardo Nascimento (que considero, com alguma liberdade, algo de híbrido – Nuno Nazareth Fernandes vem da Revista) os vencedores são temas e intérpretes ligados ao tal “nacional-cançonetismo”: “Oração”, com António Calvário (João Nobre-Francisco Nicholson-Rogério Bracinha, nomes do teatro de Revista); “Sol de Inverno”, com Simone de Oliveira (Nóbrega e Sousa e Jerónimo Bragança); “Ele e Ela”, com Madalena Iglésias (Carlos Canelhas). Esta a razão da importância que o Festival assume neste ano e faz dividir a família Lopes (acho que é este o nome; se não é peço desculpa) em “Conta-me como Foi”. É o conflito entre o futuro e o passado em directo e “ao vivo” na TV, o que era algo nunca visto até então. Qualquer coisa que fazia mesmo extremar posições e assumia alguma dose de radicalismo e de conflito geracional – o que hoje nos faria rir, claro. Curioso é verificar que esta terá sido a única verdadeira incursão vencedora do movimento Ié-Ié no Festival da RTP. Os anos seguintes, com excepção de 1970 com a vitória de Sérgio Borges com “Onde Vais Rio Que Eu Canto” (Nóbrega e Sousa), irão assistir àquilo que não se sabia na altura ser um certo domínio dos interesses conjunturais (e culturais) do PCP, na sua versão “frentista” do MDP e com a colaboração de alguns compagnons de route de ocasião, que se torna responsável pela renovação da música ligeira (repito: ligeira, não disse popular) portuguesa muito por via da influência de Ary dos Santos e da conjugação da sua muito razoável qualidade poética com a experiência de publicitário capaz de fazer os destinatários memorizar facilmente uma frase certeira. As suas “letras” reflectem isso mesmo e constituem, na altura, uma pedrada no charco. Aliás, a mesma estratégia de “apropriação” é usada pelo PCP em outras instituições mais ou menos ligadas e nascidas com o beneplácito e sob a égide do regime, desde sindicatos corporativos a associações recreativas e culturais. Esta apropriação “por dentro” de elementos do aparelho político e cultural da ditadura virá a ser-lhe de grande utilidade no pós 25 de Abril.

E pronto, mais não digo. Deixo-os com Carlos Mendes e o “Verão” de José Alberto Diogo (emérito benfiquista) e Pedro Osório.

5 comentários:

ié-ié disse...

Simplesmente irrepreensível! Vou copiar para os meus arquivos. Muito bem, muito bom, muito obrigado!

LT

JC disse...

Obrigado eu pelo elogio, que espero sincero.
Boa praia!

ié-ié disse...

Estive a deliciar-me de novo com o texto. Sincero? Vou mais longe: irrita-me que eu não saiba escrever assim! Sincero? Se escrever o livro sobre os Sheiks vou "requisitar" este seu texto. Pode ser?

Obrigado, de novo!

LT

JC disse...

Às "ordes" de vocência!
Obrigado.

Anónimo disse...

En Figueira da Foz, en verano echaban filmes tipo "espanholadas"........