domingo, março 23, 2008

Simone de Oliveira

Não fora o caso de lhe ter calhado em sorte interpretar “Desfolhada”, uma canção emblemática do período de renovação da música ligeira portuguesa do final dos anos sessenta proporcionado pela “primavera” marcelista e pela tradicional infiltração do PCP em algumas organizações e estruturas do regime, onde e quando isso era possível, Simone de Oliveira não teria passado de mais um produto do “Centro de Preparação de Artistas da Rádio”, do maestro Motta Pereira e da Emissora Nacional, aquilo a que João Paulo Guerra chamou de “nacional-cançonetismo”. Talvez o melhor desses produtos – “Sol de Inverno”, de Nóbrega e Sousa, continua a ser o seu melhor tema e a sua melhor interpretação - também beneficiado pelo afastamento precoce de Maria de Fátima Bravo e, certamente, bem melhor do que a “Tonicha” daquele inenarrável “Menina”, com um poema a puxar ao folclorismo bucólico qual versão erótica de uma ilustração de Milly Possoz.

No período de todos os radicalismos do pós 25 de Abril, o ter sido a intérprete de “Desfolhada” permitiu a Simone passar relativamente incólume e, honra lhe seja feita, soube tomar as opções partidárias acertadas em função do ambiente geral do país e do seu perfil e passado: tão à esquerda quanto credível, tão “intelectual” quanto interessava; sem se deixar resvalar para o oportunismo dos compagnons de route de ocasião, para uma direita que a não reconheceria pela sua vida privada e passado artístico ou para o campo da canção “política”, de “intervenção”, ao qual não pertencia e onde não era reconhecida. Opção inteligente teve-a também no modo como geriu a sua vida privada, não se deixando tentar pela devassa nem pela opacidade total, libertando a informação necessária, e do modo e pelos meios que lhe interessavam, para “vender” a imagem de mulher independente e de coragem num país onde, por dependências várias e cobardias muitas, esse tipo de comportamento, que deveria ser o padrão e a normalidade, ainda embasbaca muita gente. Tê-lo-á sido ou não - se o foi ainda bem - mas essa é a imagem que fez sua e a ajudou na construção da carreira. Tudo isso esteve uma vez mais bem presente na entrevista que concedeu a Judite Sousa e que hoje repete na RTP1 a propósito dos seus cinquenta anos de carreira, mas se formos verificar quem a acompanha no espectáculo desses mesmos cinquenta anos, que a mesma RTP hoje proporciona a quem estiver disposto a vê-lo (a RTP e não a SIC ou a TVI, o que faz toda a diferença e serve para caucionar uma imagem "nacional" de respeitabilidade e "qualidade"), a visão é deprimente: Anabela, Carlos Quintas, Mariza Pinto, Dulce Pontes, Madalena Iglésias, Vítor de Sousa e Wanda Stuart (cito do “Público”) pertencem ao pior de Portugal ou são o Portugal no seu pior, o que nem a presença de um mais aceitável Pedro Abrunhosa consegue fazer esquecer. É este, no fundo, o Portugal que gerou Simone e que ela cauciona. Um Portugal do qual, por também lhe pertencer e lhe ter dado sempre um certo jeito (à carreira, claro), nunca conseguiu ou terá querido descolar.

3 comentários:

bissaide disse...

É curioso que Simone foi uma das últimas escolhas para ir ao Festival de 1969 defender a "Desfolhada" - quem estava originalmente escalada para a interpretar era a actriz Elisa Lisboa. Após a desistência desta, tanto Madalena Iglésias como Verónica foram contactadas, mas por vários motivos ambas seriam também postas de parte (a primeira, alegadamente, porque se recusou a cantar o famoso verso "quem faz um filho, fá-lo por gosto"), e aí entrou então Simone. Ou seja, concordo quando diz que foi de facto uma "sorte" para ela o ponto de viragem em que se tornou a "Desfolhada" (apesar dos três anos em que ficou sem cantar, por ironia do destino), uma vez que lhe permitiu chegar a um público novo, mas a carreira da cantora no período 1958-1969 foi um percurso de mérito como poucos na canção ligeira portuguesa de então. "Sol de Inverno" é apenas a ponta do icebergue (como sói dizer-se agora), já que tantas outras se destacam das mais de 100 que gravou nesses 12 anos. É, infelizmente, um património sonoro praticamente desconhecido...

Concordo quase totalmente com o que diz sobre os convidados na gala de homenagem. Pena é, de facto, que estes não pertençam a um quadrante mais vasto, até porque acredito que outros nomes que não o de Pedro Abrunhosa estariam dispostos a celebrar em palco os 50 anos de carreira artística de Simone. Não digo que os nomes presentes sejam Portugal no seu pior, mas não fazem jus ao invulgarmente longo (para Portugal) e bem interessante percurso musical da cantora.

JC disse...

Conhecia a história da "Desfolhada", embora sem a referência à Verónica. Mas acho que o "Sol de Inverno" tb seria para a Mº de Fátima Bravo se esta não se tivesse dedicado ao casamento. Confirma, meu caro Bissaide?
abraço
JC

bissaide disse...

Essa história não conhecia! Mas em 1965 já Maria de Fátima Bravo se tinha retirado há cerca de três anos - teriam Jerónimo Bragança e Nóbrega e Sousa tentado um regresso da cantora às lides artísticas?