Tentação fácil responsabilizar a política “facilitista” do Ministério da Educação, nos últimos decénios, pelo clima de indisciplina e violência nas escolas. Tentação fácil responsabilizar os professores e a sua má ou inexistente preparação pela incapacidade de lidar com ela. Tentação também fácil apelar ao regresso impossível de uma disciplina “pura e dura”, do “antigamente é que era”, como solução para o problema. Significa isto que o Ministério e a dita política “facilitista”, os professores e a sua incompetência fruto de uma preparação inexistente, não terão a sua quota parte de responsabilidade neste estado de coisas? Claro que têm. Significa isto que regras mais rígidas de disciplina (por exemplo, deixar o telemóvel identificado em local apropriado à entrada de cada aula) não serão indispensáveis e bem vindas? Claro que sim. Mas a questão é um pouco mais funda e assim deve ser analisada.
Quando eu andava no Liceu os liceus eram frequentados por uma elite (a não-elite ficava na 4ª classe ou ia para a Escola Técnica) e os professores constituíam, eles próprios, uma outra elite respeitada enquanto tal. Era por isso relativamente fácil manter alguma disciplina nas escolas, já que ela era, em certa medida e variando de família para família, um prolongamento como que natural dos valores de ordem e disciplina, de “respeito”, vigentes na sociedade, mesmo para quem nasceu, cresceu e viveu numa família relativamente liberal, como foi o meu caso. Para além das saudáveis manifestações de irreverência e rebeldia, tanto no Liceu como em casa, era absolutamente natural os alunos levantarem-se quando entrava o professor, porque também em casa, na maioria das famílias, nos levantávamos quando chegava ou cumprimentávamos alguém mais velho. Era também natural ir de gravata para o liceu (em alguns liceus isso era obrigatório), pois esse era o dress code habitual fora do período de brincadeira, quer fosse para ir “à baixa”, ter com o pai ao escritório ou até ao cinema. Não era nada forçado pedir ao professor licença para entrar na sala de aula, se também pedíamos aos mais velhos para nos levantarmos da mesa no final do jantar. Para os professores a questão era igualmente fácil de gerir, pois também eles provinham da mesma elite que formava o grupo de alunos e, enquanto tal, eram respeitados de acordo com os valores vigentes na época. A ditadura “ajudava”, claro, mas, com ou sem ela, estes eram os padrões de comportamento, que só começaram a alterar-se, lenta e conroladamente, na segunda metade dos anos sessenta. A Escola, o Liceu, não estava, como não poderia nunca estar, desfasada daquilo que era a sociedade de então, pelo menos da sociedade que a frequentava e constituía.
A democratização da Escola, ajudada pela democratização e massificação da sociedade (o fim da sociedade de classes, estanque como a conhecíamos) alterou todo este estado de coisas, do lado dos alunos e do lado dos professores. Mesmo sem a desautorização destes e o “facilitismo” das políticas do Ministério (que são e foram reais), como explicar e fazer aceitar por um aluno, sem que este se sinta demasiado violentado nos seus valores e direitos, sem que este considere a sua imposição como uma arbitrariedade, determinadas regras de conduta que ele nunca seguiu na sua vida fora da escola e que lhe são completamente estranhas, e até anómalas, no seu dia a dia na família e no “bairro”? Como explicar-lhe que não deve usar boné ou capuz na sala de aula se isso é comum na sua casa e no seu ambiente familiar? Como explicar que não pode usar o seu telemóvel na mesma sala de aula se, provavelmente, o faz permanentemente durante as refeições em família – se é que, eventualmente, algo de semelhante existe na sua em casa – ou se fecha no quarto horas a fio a enviar SMS’s ou numa sala de chat? Como incutir-lhe códigos de linguagem que não são habitualmente os seus, deles diferindo dramaticamente? Mais ainda, como conseguir tudo isto através de professores que, também eles, se proletarizaram e para os quais muitos destes valores, se não estranhos, são, pelo menos, práticas pouco comuns e habituais na sua vida fora da escola, nas suas famílias? Para quê maçarem-se muito se, muitos deles, já escolheram o ensino porque assumiram, à partida, a sua incapacidade ou desinteresse perante a competitividade a que seriam obrigados numa outra profissão, no “mundo exterior”? Mais uma vez, a Escola não pode constituir - porque não só “não pode” como isso não é possível de acontecer - algo de exterior à sociedade que a compõe e onde se insere, onde vivem os seus agentes, alunos, professores e funcionários.
Significa isto “atirar a toalha” e capitular perante este estado de coisas? Claro que não, e é absolutamente necessário, de imediato, definir e fazer cumprir um plano de crise que inclua algumas regras básicas de comportamento, até porque, para além da questão do aproveitamento escolar, isso é indispensável ao papel da Escola como instituição integradora na sociedade. Mas a sua resolução global e de fundo parece-me ser bem mais complicada do que o simples regresso à “boa ordem” do antigamente, por muitos demagogicamente agitada como panaceia para todos os males do mundo.
Eu sou o Gato Maltês, um toque de Espanha e algo de francês. Nascido em Portugal e adoptado inglês.
sexta-feira, março 21, 2008
Indisciplina na escola e comportamentos sociais
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9 comentários:
Concordo com quase tudo.
Mas falha em querer incutir que a profissão do professor é menor, o que não é a realidade.
Existem muitos professores que se profissionalizaram no ensino não por não ter mais nada que fazer na vida, mas por opção propria.
Mais claramente estão os professores que na sua vida académica optaram por uma via ensino.
Quando fala em professor proletariado estamos de acordo mas vou mais longe sabe concerteza que é um proletariado pobre, dado se necessitar de tempo tira-o á familia se necessitar de material didático deduz no salário. Tambem tira ao seu salário a formação que paga do seu bolso, mas obrigatória para a profissão ou seja paga mais taxas.
Caro anónimo.
Não generalizei. Disse apenas que uma maioria dos professores o era por "desistência". Haverá alguns, claro, por opção livre de vida, por vocação e gosto, se quiser.
Boa Páscoa.
JC
Já agora: dos professores, quantos é que o são "por desistência"? Que "maioria" é essa? Tem estatísticas? Seria interessante saber onde reside a "cientificidade" dessa argumentação... e saber quantos são os "alguns" que o são por "por opção livre de vida, por vocação e gosto."
Boa Páscoa... cuidado com as amêndoas!
Caro NP:
Você sabe que a questão que coloca é falaciosa, pois bem sabe que não existem estatísticas, nem poderão existir, para lhe responder: se colocar a questão aos professores, a esmagadora maioria responder-lhe-á que estão na profissão por livre e consciente escolha (seja lá o que isso for), mais a mais numa profissão muito ligada ao conceito de vocação, mesmo que a resposta não seja verdadeira. Mas basta ter estado atento, nos últimos anos, às reivindicações dos sindicatos, legítimos representantes dos docentes, e ao modo como funciona o Ministério, onde os professores são altamente influentes, para perceber o que move a maioria dos professores, os conceitos que estão na sua base e as razões das suas escolhas.
Quanto ás amendoas, já comi ontem algumas, à sobremesa do almoço, a acompanhar um "late harvest" que bons amigos me proporcionaram. Recomendo...
Boa Páscoa.
Se a minha questão é falaciosa... então sê-lo-à tanto como a sua argumentação. E o que diz da profissão "professor"... poderá dizê-lo de qualquer uma. Aparentemente, para qualquer uma é necessário "vocação"... mas esse conceito, para mim, está mais ligado ao sacerdócio e à vida religiosa. :)
A mim não me repugna que muitos professores tenham ido para o ensino por outras motivações que não as ditadas pela "vocação". A mim, como pai, interessa-me mais o modo como os professores "estão agora" na profissão e não tanto "como entraram"! O meu percurso de 20 anos no ensino mostra-me que muitos dos bons professores que conheci nem sequer era isso que queriam ser... assim como muitos que se "baldam" se calhar entraram na profissão "por vocação"! Não tenho estatísticas... :)
Ser professor, com ou sem vocação, é uma profissão como outra qualquer. Como engenheiro. Como enfermeiro. Como político. Como cabeleireiro. Como empregado de mesa. Todas elas devem ser exercidas com profissionalismo e dignidade... sempre com espírito de abertura para mais e melhor fazer... mesmo que a opção inicial nem sequer fosse ser o que agora se é.
Os sindicatos dos professores lutam (também) pelo que lutam porque não esquecem que ser professor é uma profissão como outra qualquer... é por ela que muitos filhos têm comida na mesa e roupa no guarda-fatos! ;)
Caro NP:
Se reparar bem no que escrevi, não sou eu que ligo a profissão de professor ao conceito de "vocação", mas sim a sociedade, por isso aceito perfeitamente o seu raciocínio quanto a essa questão: é uma profissão e, como tal, deve ser exercida com rigor, profissionalismo e sentido dos deveres e direitos. Tem sido assim?
cumprimentos
JC
Se tem sido assim?
Sim, tem... ou não... como em qualquer outra profissão. Nem mais, nem menos. No ensino, a falta de profissionalismo e de sentido dos direitos e deveres dos professores é normalmente combatida, quer pelos pares, quer pelos pais, quer pelos Conselhos Executivos. Não sei se isso acontece nas outras profissões...
Outra coisa: tenho uma amiga que é juíza (na zona do Porto) e que me contou, há 2 dias, que está a julgar um caso em que uma professora é a ré. Ou seja, a ideia de que existe "impunidade" no seio da classe docente é um mito que uma certa parte da sociedade (incluindo políticos) quer continuar a construir e difundir!...
Já agopra: no seu post escreveu: "Para quê maçarem-se muito se, muitos deles, já escolheram o ensino porque assumiram, à partida, a sua incapacidade ou desinteresse perante a competitividade a que seriam obrigados numa outra profissão, no “mundo exterior”?"
Ou seja: não é só a sociedade que liga a profissão de professor ao conceito de "vocação". Você também o faz... mesmo que usando um discurso com outros vocábulos e outros sentidos.
Mas quanto ao estabelecimento de regras na escola... estamos de acordo. Infelizmente... muitos pais, para além de não o fazerem em casa, impedem, na prática, que isso se faça na escola. ;)
É que - acredite - as crianças, mesmo que não tenham grandes exemplos em casa, poderiam aprender essas elementares regras de convivência e comportamento se as famílias deixassem a escola e os professores trabalharem "em paz", o que raramente acontece. O problema é que muitas famílias só permitem que a escola "ensine" e não que "eduque"... e quando, numa escola, aparece um professor que quer cumprir essa dupla função, normalmente tem problemas e é desautorizado, não só pelos pais, mas infelizmente também pelos Conselhos Executivos, que não querem ter "problemas com os pais"! Ah pois... mas no fim é mais fácil dizer que são os professores que nem se querem "maçar"! :)
Cumprimentos
Só 2 pequenas notas, meu caro NP:
1. Quando se fala em impunidade dos professores - e eu nunca falei disso, falei de ausência de avaliação profissional, o que é mtº diferente - com certeza ninguém está a falar em impunidade criminal. São cidadãos, como tal...
2. Quando falo que muitos licenciados optam pela carreira de professor porque não estão dispostos à competitividade de outras profissões, em outras áreas que não o Estado, isso não significa que a opção por essas outras profissões se enquadre no conceito de "vocação", tal qual ele é entendido, isto é, integrando alguns elementos de sacrifício, entrega á comunidade, esforço, abdicação, etc. Não acredito em nada disso e mtº menos acho alguém possa ser bom naquilo que faz sem gostar. Nunca trabalhei no Estado, mas em áreas empresariais extremamente competitivas, e nunca me ocorreu o fizesse por "vocação", no sentido que normalmente se dá á palavra. Escolhi (na medida em que se escolhe), por se enquadrar na minha personalidade, me sentir bem nesse campo, gostar, "dar-me gozo", achar teria capacidade para as executar bem,influência do meio familiar, etc.
Cumprimentos
Quando falei na questão da "impunidade" referi-me ao que comummente se diz e não especificamente ao que o JC disse.
E se citei aquele caso, foi para reforçar a ideia de que, quando há mesmo razões para isso, os casos não são "abafados" ou sei lá o quê... que é a ideia que muita gente difunde sobre os professores e as escolas.
E olhe que me faz "comichão" dizer-se que não havia "avaliação profissional" dos professores, por vários motivos:
a) sinto que sou avaliado diariamente, pelo menos pelos pais dos meus alunos, que estão atentos ao que faço;
b) perdi mais de 500 dias de serviço exactamente na sequência de um processo de (não) avaliação... que agora, afinal, me diz e me dizem que não o era. :)
E quanto à vocação... realmente deveria começar-se por a definir. Seria mais fácil para a discussão... :)
Mas acho que fica bem expressa a opinião de ambos.
Eu, para terminar este assunto, apenas gostaria de acrescentar que acho mais credível a ideia de muitos licenciados irem para o ensino, não por medo da competitividade no privado, mas por falta de opções de emprego. Se reparar bem, muitos cursos só tem a "via de ensino", já que a "via de investigação", por exemplo, em Portugal... "é mentira"! E disso... "os professores" não têm culpa. Mesmo assim... há milhares de professores no desemprego... e lembro que ainda há pouco tempo nem sequer tinham direito ao subsídio de desemprego! :)
Cumprimentos
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