Fui, embora episodicamente, aluno do Liceu Camões, o qual esta semana comemorou 100 anos da sua existência. Terá o Liceu, certamente, amplos motivos com os quais se regozijar: em cem anos acontece muita coisa, de bom e de mau. Mas a efeméride fez-me lembrar um elogio fúnebre em que do defunto apenas se lembram as qualidades, mesmo que raras e ralas, e se escondem os defeitos, mesmo que demasiado evidentes ou até prevalecentes. É que, convém não esquecer nesta ocasião, durante décadas o Liceu Camões foi dirigido por um sinistro personagem, de seu nome Joaquim Sérvulo Correia, que impôs no Liceu um reino de terror que ele confundia, claro está, com disciplina; pedagogias retrógradas e autoritárias, apesar de alguns intelectuais prestigiados (Bénard da Costa, Vergílio Ferreira e outros) que por lá exerciam a profissão de professor; um sem número de proibições, a maioria delas ridículas, que propositadamente reproduziam, a nível do Liceu, os valores da ditadura salazarista; um ambiente cujo resultado prático, declarado ou não como objectivo, era a despersonalização do aluno, algo com o qual o meu individualismo de sempre e rebeldia de adolescente nunca conseguiram lidar.
Poderá argumentar-se que este era o “caldo de cultura” de então, e que, de um ou outro modo, o ambiente em outros Liceus de Lisboa não seria muito diferente. Não é verdade! Frequentei posteriormente o Liceu D. João de Castro, durante algum tempo dirigido por José Hermano Saraiva, o mesmo que foi ministro da ditadura durante a crise académica de 1969, e o contraste não poderia ser mais evidente, o que prova que, mesmo em circunstâncias idênticas e difíceis, as pessoas podem fazer a diferença mesmo quando provêm de áreas políticas idênticas. O D. João de Castro era, por contraste com o Camões, um espaço de pedagogia e liberdade (a liberdade possível à luz dos valores e restrições da época, claro) que desenvolvia e potenciava as capacidades dos seus alunos, que os responsabilizava pelos seus actos e onde estes, na sua maioria, se sentiam bem e integrados, se sentiam parte de um projecto colectivo que não sufocava a expressão da sua individualidade. Recordo isso com gratidão.
O Liceu Camões comemorou os primeiros 100 anos da sua existência. Como disse, terá certamente muitos motivos dos quais se pode orgulhar. Outros, como tentei explicar, nem tanto assim. A mim e a muitos outros da minha geração (a dos "baby boomers" do pós guerra), deve desculpas pelo modo como nos tratou, não sabendo compreender os novos valores emergentes de uma geração de mudança. Gostaria de sobre isso ter ouvido ou lido uma palavra que fosse, um assumir de erros, o reconhecimento de que terão sido tempos infelizes e difíceis, e não o apagar de um passado. Ingenuidade minha...
Poderá argumentar-se que este era o “caldo de cultura” de então, e que, de um ou outro modo, o ambiente em outros Liceus de Lisboa não seria muito diferente. Não é verdade! Frequentei posteriormente o Liceu D. João de Castro, durante algum tempo dirigido por José Hermano Saraiva, o mesmo que foi ministro da ditadura durante a crise académica de 1969, e o contraste não poderia ser mais evidente, o que prova que, mesmo em circunstâncias idênticas e difíceis, as pessoas podem fazer a diferença mesmo quando provêm de áreas políticas idênticas. O D. João de Castro era, por contraste com o Camões, um espaço de pedagogia e liberdade (a liberdade possível à luz dos valores e restrições da época, claro) que desenvolvia e potenciava as capacidades dos seus alunos, que os responsabilizava pelos seus actos e onde estes, na sua maioria, se sentiam bem e integrados, se sentiam parte de um projecto colectivo que não sufocava a expressão da sua individualidade. Recordo isso com gratidão.
O Liceu Camões comemorou os primeiros 100 anos da sua existência. Como disse, terá certamente muitos motivos dos quais se pode orgulhar. Outros, como tentei explicar, nem tanto assim. A mim e a muitos outros da minha geração (a dos "baby boomers" do pós guerra), deve desculpas pelo modo como nos tratou, não sabendo compreender os novos valores emergentes de uma geração de mudança. Gostaria de sobre isso ter ouvido ou lido uma palavra que fosse, um assumir de erros, o reconhecimento de que terão sido tempos infelizes e difíceis, e não o apagar de um passado. Ingenuidade minha...
14 comentários:
Temos pontos de vista diferentes, JC :)
Já lhe respondo na Gota.
Pontos de vista diferentes são a essência da democracia, Teresa.
Andei sempre num Liceu, com um reitor muito severo, a quem nunca lhe foi visto um sorriso... Evidentemente que podia ter sido melhor e ter tido um reitor firme mas simpatico e humano.Os tempos eram de ditadura...Apesar de tudo e estamos a falar de tempos dos anos 50 e 60, um aluno saído do Liceu chegava à Universidade com a cabeça razoalvelmente arrumada...Não vou comparar com o que se passa hoje,descanse...mas tenho a agradecer o que o Liceu fez por mim.
Tb eu, Rui. Mas refiro-me ao D. João de Castro, cujo reitor, felizmente ainda vivo (José Hermano Saraiva), provava que a ditadura (e Saraiva era um salazarista) não era totalmente incompatível com alguma liberdade e modernidade pedagógica. Que até chegava a convidar alunos (eu era um deles, por vezes) para serões culturais na sua casa do Restelo. Exactamente o contrário do que se passava no Camões, que reproduzia o que de pior tinha o salazarismo.
Quanto ao que se passa hoje, Rui, por muito que as condições gerais sejam mtº diferentes (e são), não é exemplo para ninguém. Como deve calcular, é tb algo com o qual não pactuo!
caro Jc
Seguindo a tua sugestão vim lêr o teu artigo de fundo sobre os 100 anos do Liceu Camões e além de estar muito bem escrito,é a reprodução fiel do que lá se passava.
As boas recordações dos colegas e de uma série de professores que deixaram saudades, não têm nada a ver com essa figura sinistra e repelente do SR.Reitor Sérvulo Correia.
Será que ele alguma vêz pensou que os alunos lhe tinham respeito???
MEDO E DESPREZO eram os únicos sentimentos que aquele sujeito poderia criar á sua volta.
Conheci o filho,e é curioso que se não tivesse exactamente a configuração da cabeça do pai (bigorna)diria que a exa. esposa farta de ter um marido tão meigo tinha investido numa produção independente,pois não tinha nada a vêr com o pai
Era um colega impecável!!!!
Estávamos em Ditadura!!!Pois estávamos,mas aquilo era sómente uma demonstração de estupidez e de incapacidade de se impôr pela sua inteligência e humanidade.
Muito sinceramente!!!!!
QUE A TERRA LHE SEJA PESADA!!!!
P.S.Nunca tive qualquer problema disciplinar com o cavalheiro,mas não era cego nem surdo o que era e ainda é apanágio da maioria dos portugueses.
Costumo dizer e assumo que ser português não é nacionalidade mas raça....bastante triste por sinal!!!(o parceiro do lado que se lixe,é a nossa máxima mais comum!!)
Quem não estiver de acordo e me queira descompôr não faça cerimónia
DBACELAR@GMAIL.COM
Obrigado, Daniel, pelo teu depoimento, que acaba por complementar o que digo no "post".
O "Totas" poderia não ser a melhor das pessoas, mas, pelo menos, havia respeito, ordem e instrução.
Hoje em dia com esta democracia(?) formamos apenas iletrados imbecis e alguns fora-de-lei. Serei, talvez, politicamente incorreto, mas é assim que vejo o tristíssimo estado a que chegámos.
A nossa juventude chega as universidades sem saber escrever e ler, não sabem compor uma redação, ou um qualquer texto.
Portanto o Reitor do Camões poderia ser um tipo feroz, mas imponha disciplina, aquela coisa que a tantos democratas de pacotilha, faz tanta comichão.
Como eu gostava que houvesse, hoje em dia, mais umas centenas de "Totas" e já agora mais uns quantos Salazar
Freitas
Caros,
Frequentei o Liceu Camões durante 7 anos e partilho a imagem de um Reitor desligado e desinteressado da realidade. As anedotas foram muitas e passados todos estes anos lamento que sejam elas a perdurar e não o trabalho de alguns professores que por lá passaram e boas e gratas recordações deixaram. O Dr. Sérvulo Correia era um exemplo típico da classe administrativa da altura em que a escolha era feita não pelas capacidades pessoais mas pela obediencia cega a um sistema politico. Folgo em saber que o filho é uma pessoa normal e que Deus nos proteja de outros casos como este.
Também fui aluno do Liceu Camões de 1958 a 1963 e não me esqueço do pavor que sentíamos sempre que o então popularmente chamado "Cabeça de Martelo" - reitor Sérvulo Correia - aparecia na varanda do primeiro andar. Relembro que não podíamos correr nos pátios, tínhamos de ir com a gravata bem posta ou com camisola de gola alta. Não se podia ir brincar para o campo de jogos no lado Norte do edifício. Os alunos mais novos estavam interditos de utilizar o pátio dos mais velhos.
Depois, como tive 2 deficiência no 5º (hoje 9º) ano fui estudar para Santa Iria, onde morava, no Colégio Bartolomeu Dias que só tinha alunos até o 5º. Tive de voltar a Lisboa para continuar os estudos e fui parar ao Alto de Santo Amaro: Liceu D. João de Castro. Meu Deus, que diferença. Passou a ser maravilhoso poder estudar num Liceu. Já não me lembro quem era o Reitor então mas ainda hoje tenho muitas saudades desse tempo!
Frequentei também o Liceu Camões, entre 1959/60 e 65/66. As impressões sobre o regime disciplinar imposto pelo reitor Sérvulo Correia (o denominado "Cabeça de Martelo")não foram as melhores. Imperava o regime de "bufos", desempenhado essencialmente pelos contínuos, o chefe dos quais, o Sr. Gomes, era como que um braço direito do Reitor. Inacreditável como se proibia as crianças de correr no recreio! Mas mais incrível ainda era a proibição dos alunos do Camões se poderem dar ou encontrar com as alunas da Escola António Arroio, nessa altura, localizada nas proximidades do Camões, proibição essa vigiada por alguns contínuos, a mando do Reitor, colocados no exterior do liceu, nas horas de saída dos alunos. Autêntico regime pidesco. A grande virtude do Liceu Camões, na minha perspectiva, foi ter tido grandes professores, uns meros desconhecidos e outros bem conhecidos, como Virgílio Ferreira(Português) , Ema Tarracha (Português), Mário Dionísio (Francês), Rómulo de Carvalho (António Gedeão - Química) e outros.E não posso esquecer colegas, que já na altura se destacavam pela inteligência e pela diferença, como sejam, entre vários outros,os casos de Luis Cintra, António Rendas, Júlio Appleton e António Guterres. Por tudo isto, entendo que, a despeito do Reitor que se encontrava à frente do Liceu Camões, valeu a pena ter feito todo o meu ensino secundário neste liceu.
Também estudei no Camões entre 1958/65 quer na sede(1 2 6 e 7 anos) quer nas secções do areeiro e alvalade (3 4 e 5 anos).Na sede,confirmo o excesso de rigor e disciplina do Totas, típicos da ordem salazarenta,que criava um ambiente de medo entre alunos e professores,mas nas secções os vice reitores permitiam uma maior liberdade.
Por isso,estranhei bastante as ridículas exigências quando regressei a sede no 3 ciclo. Recordo uma aula de filosofia num final quente de maio, em que o professor(Bénard da Costa),devido ao calor,autorizou a tirar a gravata e que, por esse facto, foi interrompida pelo reitor que,desautorizou o professor, expulsou alguns dos alunos "descompostos" e
ficou até ao final do tempo a arengar moral sobre comportamentos e compostura.
Apesar disso, o nível de ensino era elevado, graças a competência da maioria do quadro docente que incluía nomes importantes da cultura portuguesa.Tive o privilégio de ter como "mestres",entre outros,Mário Dionísio,Virgílio Ferreira,Bénard da Costa e fui condiscípulo de jovens que mais tarde se vieram a distinguir em vários domínios na vida pública do país: Antônio Reis, Miguel Lobo Antunes, Jorge Silva Melo.
Frequentei a saudosa Escola António Arroio que confinava com o Liceu Camões num pequeno pateo nas traseiras e onde era proibido irmos para não contactar com os alunos do liceu, contacto esse nem sempre pacífico. Por essa altura havia um acordo entre estas escolas para os alunos da António Arroio poderem almoçar no refeitório do liceu (por 7 escudos). Ora o regime da nossa Escola, muito mais liberal e contestatário (mas com separação nos pateos entre F e M) levava a que durante o almoço é quando entrava o reitor todos os alunos se punham de pé... excepto os da António Arroio o que fez com fossem, esses mesmos, proibidos de entrar no refeitório a partir desse dia.
Só agora soube que esse "ser" se chamava "cabeça de martelo".
Teresa, tenho também pontos de vista diferentes de JC.
Era aluno antes e depois do reitor Sérvulo Correia. Sei o que era antes e o que passou a ser.
Em 1959/60 fui estagiário neste Liceu onde voltei em 64/65 depois do serviço militar que incluiu 27 meses em Angola.
No Camões permaneci como professor eventual, como na altura se chamava, até 1972 data em que me efectivei noutro estabelecimento de ensino.
Gostaria de conhecer os seus pontos de vista. A referência Gota não me leva a parte nenhuma. Agradeço-lhe qualquer outra no sentido referido.
Obrigado
Caro JC,
A Internet, veículo para blogues e outras coisas maravilhosas, tem desta coisas: Pesquisando Joaquim Sérvulo Correia, para identificar o anterior Reitor do tão recordado Liceu Nacional de Camões, encontrei esta página de 2009, veja bem, já quase no fim da adolescência.
É que queria abordar o tal "Senhor Reitor", o novo "Senhor Reitor" que muitos de nós desconhecíamos até começarem os castigos.
Lembro-me então do Militão, criança como eu que saltavam ao alho, ao eixo e outras coisas até que um dia passou um senhor desconhecido e ele, com uma palmada nas costas, disse: "É pá, amocha para eu saltar". Era o Senhor Reitor que, de imediato, o mandou ir à secretaria para ficar suspenso por dois ou três dias.
Foi uma época negra, um pequeno grupo começou a levar fios de lá a tricotar na hora do recreio, o que levava Sérvulo Correia a ficar possesso.
Foi em 1950 ou 1051 que, da data exata já hoje não me recordo.
Recordo com saudades, isso sim, os anos que por lá passei nos estudos, os professores de Matemática "Vigas" que era o Professor Viegas Louro, o "Bicho" e uma bela Professora que tinha enviuvado naquela época.
Lembro-me, ainda, de comer na cantina, de cujo pagamento estava isento por ter boas notas e ser pobre; das sessões de ginástica no ginásio central e dos sábados em que um Reverendo nos punha a cantar em coro.
Belos tempos.
Adenda:
Tenho-me perguntado, muitas vezes, do que terá sido feito de tantas coleções que existiam na biblioteca, entre elas "O Mosquito" que era das leituras mais entusiasmantes em banda desenhada.
Agora falando de Malta: Que belo país, onde tanta história dos portugueses existe, sem que tal seja promovido com intuitos culturais.
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