segunda-feira, dezembro 11, 2006

Pinochet

Ditadores são como os chapéus: há muitos. Demasiados. Não os chapéus, contra os quais nada tenho, mas os ditadores. E houve alguns com as mãos bem mais sujas de sangue do que Pinochet, o que em nada o aligeira de responsabilidades nem tão pouco lhe concede atenuantes. Mesmo no século XX e na sua segunda metade, quando os direitos humanos adquiriram foros de cidadania reconhecida, e em países que se pretendem geridos pelas leis da civilização e estarão longe das várias Áfricas que nós ainda consideramos coisa de primitivos, esquecendo o que por lá fizemos e os, maus, exemplos que por lá deixámos. Mas houve, de facto, algo que contribuiu que para Pinochet ficasse para a história como o símbolo do que mais odioso pode existir nos ditadores e nas ditaduras. Mais do que isso – e muito justamente - como o exemplo do “torcionário” no poder: um conjunto de circunstâncias, factores e acontecimentos que determinaram que assim fosse e desse modo se venha a fazer história. Tentemos sistematizá-los.

Em primeiro lugar, o Chile é o país mais europeu da América Latina. Não estamos numa daquelas repúblicas onde os generais Alcazár e Tapioca trocavam regularmente o poder por via de “pronunciamentos” militares, mas num país com uma tradição democrática estabelecida e umas forças armadas, dizia-se, constitucionais, o que terá contribuído para o “choque e espanto” sentidos.

Também, o facto de Salvador Allende ter sido eleito democraticamente. Com apenas 36.2 % dos votos, é certo, mas assim mandavam os preceitos constitucionais e as regras eleitorais. Para além disso, a própria figura de Allende, longe de ser um populista como hoje o são os que se reclamam da “esquerda” na América Latina, era a de um “europeu como nós”, respeitador da legalidade e um homem culto de formação humanista. Por fim, um “moderado” tanto quanto se podia sê-lo nessa época e nesse local. Por vezes, apetece-me compará-lo a Manuel Azaña, ambos homens bem intencionados levados na radicalização de um processo que pareciam já não dominar. Por fim, a dignidade da sua morte, e mesmo o romantismo que ela encerra na sua última fotografia conhecida, pistola-metralhadora na mão e capacete mal posto na cabeça, muito pouco à l’aise na pose, o que contribuía para reforçar a sua imagem do cidadão por oposição ao guerrilheiro, figura tão em voga na América Latina de então.

Por outro lado, e tanto quanto isso era possível acontecer na época, tudo se passa numa certa marginalidade face à “guerra fria”, por um lado, ou aos modelos “guerrilheirista” e “guevaristas”, por outro, não sendo o partido comunista do Chile uma força determinante em todo o processo nem tendo nele uma influência decisiva. Terá sido mesmo, talvez, o primeiro processo em que aquilo que se designava genericamente por “esquerdismo”, tão característico do pós Maio 68, assumiu um papel de destaque e uma influência decisiva, muito por responsabilidade da ala esquerda do PS chileno e do MIR.

Mais ainda, é um golpe militar “puro e duro”, sem (ao contrário dos fascismos, do comunismo ou de movimentos populistas) o suporte de uma teoria ideológica ou de um pensamento doutrinário estruturado. Trata-se, pura e simplesmente, de estabelecer a “lei e a ordem” e de assegurar a continuidade dos negócios em geral e dos interesses americanos em particular (mais os dos negócios do que os estratégicos, o que reforça a carga negativa). É o “estado policial” na sua forma mais pura e despojada. Por fim, a brutalidade inicial não é escondida mas mostrada como elemento dissuasor – e os acontecimentos do Estádio Nacional e o episódio Victor Jara assumem aqui um carácter estruturante. É a tortura selectiva na sua forma mais brutal e primitiva (dos choques eléctricos e por aí fora) que assume o posto de comando. A fotografia de Augusto Pinochet, óculos escuros, sentado, rodeado pela sua "junta" militar passa para a história da iconografia política como o símbolo do medo, do “Viva la Muerte” mais de trinta anos depois.

Por último, estamos na época de todos os sonhos e experimentalismos vários. Na ressaca da “primavera de Praga”, o comunismo soviético perde a credibilidade que, aqui e ali, ainda lhe sobrava dos tempos da WW II. Existe, à esquerda, um clima febril de busca de alternativas, de “modelos”, do “maoísmo” ao “guerrilheirismo guevarista”, do “socialismo em liberdade” aos nacionalismos terceiro-mundistas. A experiência de “transição pacífica para o socialismo”, no seio das instituições liberais, é uma ingenuidade comovente que apaixona, e à qual o golpe de Pinochet põe termo colocando também assim um fim em todas as utopias.

Morreu, finalmente, Augusto José Ramón Pinochet Ugarte. Parece que era católico, e por isso acreditava na imortalidade da alma, se é que ditadores a têm. Pois que assim seja e, para o caso de a ter, que a memória das suas vítimas a atormente para todo o sempre.

3 comentários:

Anónimo disse...

E não esquecer que era AMIGO DE ALLENDE... portanto, soma a tudo o mais, a traição a outro valor universal: a amizade!

Anónimo disse...

Cara Cinderela:

Amigos, amigos, não seriam. Mas lá que Pinochet era tido como um militar respeitador dos valores democráticos e constitucionais e por isso terá sido promovido...

JC

Anónimo disse...

Há sol em Santiago!

Demorou mas chegou.