Ironicamente, e ao contrário de interpretações erróneas e apressadas de algumas das suas atitudes por quem tem dos hábitos e das culturas uma ideia que não ultrapassa a massificação redutora, é, no filme de Stephen Frears “The Queen” (por favor e mais uma vez, lê-se Stiven e não Stefan), Elizabeth II a personagem com maior e mais densa estrutura emocional e humana, colocando acima de si enquanto “individualidade” - e, por vezes, mesmo em contradição com ela - os interesses da instituição que representa e jurou servir toda a sua vida. Por isso, e para isso - para cumprir esse seu juramento – faz cedências puramente tácticas àquilo que se pode classificar de efémero: o glamour do jet-set e a histeria de um povo prisioneiro desse mesmo efémero, servido pelos media em formato de telenovela tablóide. De facto, talvez nada possa ser mais visceralmente antagónico entre si do que os valores da aristocracia britânica e os do populismo “à là Evita”, consubstanciado nessa estranha aliança da working class com a futilidade e frívolidade dessa nova classe dominante, das revista do “social”, que vive da exposição pública e de um comércio de sentimentos que obviamente não possui. Enquanto Blair vê no episódio, de modo frio e calculista, a oportunidade única de se impor, política e popularmente, enquanto novo primeiro-ministro trabalhista, portador de um projecto de mudança - o que sabe não ser possível contra a monarquia mas enfraquecendo-a na justa medida em que a obriga a cedências –, em Elizabeth está sempre presente um sopro de nostalgia pela vida privada que nunca teve ou pode, por vezes, apenas ter vislumbrado. Desabafa, para com o seu retratista, que gostava de poder votar, não só para poder expressar uma escolha mas para poder experimentar a sensação de estar presente e “pôr a cruzinha”; escolhe guiar o seu Land Rover e tenta repará-lo quando lhe parte a transmissão, recordando os seus tempos de mecânica na guerra; pragueja contra a sua imperícia e usa o telemóvel como um indiscutível acto de privacidade; e a sua resposta a Charles quando, anteriormente, este lhe recorda que ela tinha pensado em trocar o carro (“este ainda anda muito bem”) é a vitória da mãe e da chefe de família, mas também de uma concepção de vida e de valores. Blair escolheu a sua vida, a Elizabeth foi-lhe imposta. O facto de a família real pretender para Diana Spencer um enterro privado, independentemente da pouca simpatia que esta desperta em Elizabeth, mãe e filha (recordar-se-ão demasiado do cunhado e tio David/Edward VIII), representa o restabelecer de algo que se encontra em perda nos dias de hoje: o pudor na expressão dos sentimentos e a divisão clara entre o público e o privado. O final mostra-nos, sob a aparência de um Blair rendido á instituição monárquica e ao charme de Elizabeth (“vais ter com a tua namorada”, diz Cherie, uma republicana, com ironia), um Blair claramente vencedor e uma Elizabeth onde é visível um sentimento duplo: reconhece-se vencida, nos seus valores, mas sabe que esse foi o preço a pagar para a sobrevivência da instituição que representa, pelo menos no curto prazo, e expressa, de modo subliminar através da partilha do privado – o passeio no jardim com os cães –, a sua gratidão. Uma interrogação fica: até que ponto pode uma instituição como a monarquia, que vive da tradição e da continuidade, fazer cedências ao efémero e circunstancial sem se “travestir”, ela própria, tornando-se desnecessária?
1 comentário:
Não vi ainda o filme, mas apreciei muito a sua perspectiva. Faz todo o sentido.
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