quarta-feira, dezembro 19, 2012

"Empobrecimento", terceiro-mundismo e forças de segurança

É bom lembrar aos mais distraídos que o "empobrecimento", proposto e aplicado por este governo, não tem como consequência prática "apenas" uma redução do rendimento disponível das famílias, com especial incidência na compressão da classe média. Aliás, esta "compressão" é mesmo propositada, já que pelos seus padrões habituais de consumo, e num país desenvolvido, é tradicionalmente a classe média a maior responsável pelo crescimento dos bens importados, com a respectiva contribuição para um eventual desequilíbrio externo. Mas adiante... 

Como disse, o "empobrecimento" assume-se como um objectivo estrutural e, assim, tende a reflectir-se a vários níveis da sociedade, e não só na diminuição directa do "poder de compra". Por exemplo, ele terá as suas consequências no definhamento do Estado Social (muito ligado às classes médias e ao seu desenvolvimento), substituindo a solidariedade inter-classista e inter-geracional pelo "assistencialismo" e por um sistema de pensões baseado em seguros individuais; reservando os serviços gratuitos (saúde, educação) para os mais pobres dos pobres; substituindo o ensino inclusivo pela segregação e segmentação escolares; degradando a qualidade dos vários serviços públicos, enfim... afastando a grande maioria dos cidadãos do Estado e empurrando Portugal para uma estrutura social e económica (o célebre enfoque nas exportações...) com muitas características que encontramos nos países do terceiro-mundo. Escusado dizer que tudo isto será necessariamente acompanhado de algum definhamento democrático e terá, a prazo de uma ou duas gerações, consequência inevitáveis na mentalidade, comportamentos e ambições dos portugueses, tal como a integração europeia o teve em sentido contrário: no do progresso material, cultural e civilizacional. Trata-se, pois, de um projecto estruturado de regressão civilizacional que faz tábua rasa dos legados social-democrata e democrata-cristão que conduziram a Europa do pós-guerra ao progresso e ao bem-estar social.

Vem todo este arrazoado a propósito de um tal projecto de redefinição das funções da PSP e GNR, defendendo esta última (que, recorde-se, ao contrário da PSP, é uma força militar) passe a ter funções acrescidas no "combate à criminalidade violenta e terrorismo". Por diversas vezes tenho neste "blog" manifestado a minha discordância face à existência, de facto, de duas polícias de segurança interna, uma civil e outra militar, dividindo os portugueses entre cidadãos de 1ª (os que vivem em áreas sob a jurisdição de uma PSP civil) e de 2ª, aqueles cuja segurança e apoio é da responsabilidade de uma polícia militar, como o é a GNR. Já há muito ambas deveriam ter sido fundidas numa só, de natureza civil, tal como acontece na maioria dos países europeus mais democráticos e civilizados, integrando também, como corpo especializado na investigação criminal, a actual Polícia Judiciária. Infelizmente, não foi este o caminho seguido e o actual documento propõe mesmo se caminhe em sentido contrário, militarizando a segurança dos cidadãos ao bom estilo terceiro-mundista africano e da América Latina, o que não deixa de fazer todo o sentido em função do projecto estruturado de "empobrecimento" global da sociedade que o actual governo tem para o país.

Mas problema acrescido é a resposta que o Partido Socialista tem para dar a um documento que estará nos antípodas daquela que deveria ser a concepção de sociedade de um partido de raiz ideológica social-democrata. Conforme ouvi hoje no "Fórum TSF" e li no DN, em vez de optar por uma resposta ideológica baseada em princípios políticos claros e inequívocos, a deputada Isabel Oneto embrenhou-se numa série de argumentos processuais, de explicação confusa e natureza meramente conjuntural, facilmente reversíveis e que deixam intacta qualquer opção de fundo por parte do governo. Dizer que tal é lastimável é ser demasiado benigno para um PS que parece não ter rumo nem cultura política, limitando-se a vaguear ao sabor da conjuntura esperando que o poder lhe caia nos braços.

4 comentários:

Queirosiano disse...

O problema virá precisamente do facto de, a meu ver, o país nunca ter tido um partido de verdadeira matriz social-democrata, como os que existem no UK ou no Norte da Europa, e que têm têm sido um factor de estabilização sócio-política mesmo (sobretudo) nos momentos mais adversos.

Em Portugal tivemos um PS, herdeiro da Primeira República, que se reclamava "socialista" e se foi adaptando/reconvertendo em função das conjunturas e da ideologia dominante do seu pessoal dirigente (nos casos em que este tinha alguma ideologia perceptível). Sempre inconsequente, nunca foi social-democrata de maneira constante e assumida, e parece-me que a própria designação (envergonhada) continua a causar mal-estar no interior do partido.

Tivemos também o PPD, depois PSD, que foi mais um arranjo de circunstância do que algo construído com um mínimo de base ideológica e de reflexão política. Tirando o leque de interesses localizados que constituem o cimento do partido, não se encontra nele qualquer reflexão política transversal que lhe defina a identidade.

Enquanto as coisas iam andando bem, essas insuficiências dos dois partidos podiam ser disfarçadas. Num momento de escolhas cruciais, a falta de uma matriz mínima colectivamente assumida faz deles apenas duas forças de ocupação do poder, à deriva.

Resultado: ausência de forças vistas como verdadeiramente estruturantes, e caminho (mais) aberto para os extremos e a demagogia. Também neste campo a nossa "modernidade" era fictícia.

Cumprimentos

JC disse...

De acordo com o que diz c/ uma ressalva e uma excepção: apesar do PS não ter, de facto, uma verdadeira origem social-democrata,operária e sindical,a sua evolução não é mtº diferente de outros partidos semelhantes na Europa. Aqui ao lado, na 1ª metade do século XX, o PSOE, c/ Largo Caballero, era um partido com forte implantação operária, até de cariz revolucionário e que esteve, por exemplo, bem presente na revolta mineira das Astúrias, em 34. A sua evolução não foi contudo mtº diferente. Esta é a ressalva. A discordância tem a ver c/ a modernidade ser fictícia. Apesar de tudo, o país de hoje nada tem a ver c/ o anterior à adesão à CEE. Mesmo na mentalidade dos mais jovens, no seu grau de preparação, aspirações e cosmopolitismo, há uma diferença abissal e isso, ao contrário do poder de compra, irá perdurar. Pelo menos, como digo, por uma ou duas gerações.
Cumprimentos

Queirosiano disse...

É a minha vez de discordar. Ou melhor, de introduzir uma precisão no que respeita à modernidade.

Vivo há muitos anos fora do país mas vou frequentemente a Portugal. Julgo ter simultaneamente o conhecimento e a distanciação.

É indiscutível que o país nada tem a ver com o que era antes da adesão à CEE. E há indicadores claros de progresso na sociedade (mortalidade infantil, escolarização, alguma maior eficácia administrativa, aplicação de tecnologias de ponta de maneira muitas vezes pioneira...). Mas o que me parece é que a grande evolução se deu ao nível da prosperidade material e do consumo. Ao nível da cidadania, tudo ficou a um nível ligeiro e superficial - reflectindo porventura um "progresso" fortemente baseado na evolução do poder aquisitivo e não na evolução das mentalidades. Esta mesma ligeireza e superficialidade está na origem, a meu ver, do fenómeno das juventudes partidárias, por exemplo.

Quanto ao grau de preparação dos mais jovens, tenho sérias dúvidas.

São mais cosmopolitas, é certo. Pelo menos ao nível de certas experiências e de certas aspirações a que dantes só antes um grupo reduzido tinha acesso.

É indesmentível que houve uma explosão de licenciaturas e de cursos de toda a espécie, mas - e aqui falo com base na minha experiência profissional - o nível médio desses licenciados é relativamente fraco (e vejo-o mais fraco de ano para ano!)e sem grande capacidade competitiva. É claro que há uma minoria de muito bons, que vinga, mas os bons são bons em qualquer contexto.

A verdadeira modernização de uma sociedade é global, com uma evolução colectiva das mentalidades e do conhecimento e uma capacidade de intervenção cívica que vai para além de um sindicalismo à maneira dos anos 70. Se se retira isso, a evolução material não será mais do que uma forma colectiva de novo-riquismo.

Ora, mesmo entre aqueles mais jovens que considera evoluídos (e que o serão, de certa maneira)e uma grande camada da população há ainda um enorme fosso a todos os níveis, coisa que não se encontra, por exemplo, em França ou na Alemanha (não falo na Inglaterra porque as alterações da composição social começam a fazer-se sentir com uma certa acuidade).

A título um pouco caricatural, mas não despiciendo: quer maior prova do nosso atraso persistente que um Partido Comunista que vive noutro planeta e que continua a ter resultados eleitorais que rondam os 10%? Quando lhes falo nisso, os meus amigos estrangeiros julgam que estou a brincar.

Cumprimentos




JC disse...

1. Mtº do que diz é verdade, incluindo o que diz sobre o PCP e o sindicalismo. Mas permito-me chamar a sua atenção para o seguinte: não existe evolução de mentalidades, cidadania, etc, pelo menos de forma massificada, sem que primeiro exista progresso material. é esse progresso material e acesso a formas de consumo anteriormente não possíveis, que permite que se contacte com outras realidades passe a viver de modo diferente. Demora depois uma ou duas gerações? Claro. Mas s/ esse progresso material isso não será possível, salvo excepcionalmente e em casos mais ou menos restritos.
2. Mtºs licenciados jovens estão mal preparados? É verdade, mas nas gerações anteriores tinham a 4ª classe, o 5º ano e os avós eram analfabetos. E a par com essa média mtº baixa, existem mtºs mais jovens com frequência e licenciaturas em boas universidades estrangeiras, incluindo MBAs, o que nos meus tempos de jovem adulto era quase inexistente. Para já não falar no programa rasmus, que possibilita o contacto c/ outro tipo de realidades sociais e culturais. Como disse uma vez aqui a alguém, até os jovens do secundário que vão para Lloret Del Mar embebedarem-se na bebida e no sexo (e os que vão são da classe média e média-baixa; há duas gerações trabalhariam no campo) representam um progresso face ao que acontecia no meu tempo, em que, com essa idade, no máximo tinham ido à capital do distrito. As coisas demoram o seu tempo, houve uma ENORME evolução e, apesar dos problemas que mtº bem foca, temos razões para nos orgulhar.
Cumprimentos