domingo, junho 15, 2008

Um país vulnerável ou sociedades vulneráveis?

O primeiro-ministro declarou no final da paralisação dos camionistas ter sentido o país vulnerável. É uma mera constatação que qualquer um pôde fazer. Mas de onde vem e onde nasce essa vulnerabilidade? É o país que está vulnerável ou isso acontece com todas as sociedades modernas em virtude da forma e do modo como se organizam e estruturam? Bom...

O PCP veio "a correr" afirmar que essa vulnerabilidade se devia à opção pelo transporte rodoviário em detrimento do ferroviário. Tem alguma razão, mas essa é apenas a parte que mais lhe interessa, já que o transporte ferroviário está, na maior parte das vezes, entregue a empresas públicas ou onde o Estado detém importantes poderes de controle. Mas, como disse, tem aí um ponto importante a seu favor, já que esse controle permite também aos governos prever, evitar e gerir melhor eventuais conflitos e, mesmo que essas empresas fossem maioritariamente privadas, é sempre mais fácil ter como interlocutor uma ou meia dúzia de grandes empresas estruturadas e dirigidas por gente mais preparada (o governo lá foi negociando com a ANTRAM) do que uma multitude de micro e pequenas empresas empresas entre o familiar e o quase, passando pelo "mais ou menos" e também pelo "assim-assim". Só que o problema é mais vasto, e o transporte ferroviário não só não faz o transporte door to door como, por isso e pelas necessidades logísticas das sociedades e empresas actuais, dificilmente pode preencher, por menor flexibilidade, todos os requisitos exigidos. Vamos um pouco atrás, aos tempos pré-históricos da 1ª metade do século XX.

Há 50 ou 60 anos, em Portugal, vivia-se maioritariamente no campo, uma boa parte da economia era de subsistência e de trocas locais e as pequenas vilas e pequeníssimas cidades eram, em grande parte, abastecidas por produtores locais. Mesmo as cidades como Lisboa ou Porto, sem as grandes áreas suburbanas de hoje em dia e onde as pessoas viviam maioritariamente perto do seu local de trabalho, eram abastecidas em frescos pelas zonas rurais circundantes (no caso de Lisboa, pela região saloia, por exemplo) e a composição da procura de produtos alimentares ou de higiene era muito menos segmentada e sofisticada do que hoje em dia, mesmo nas classes mais altas. A distribuição, essa, era assegurada por uma multidão de pontos de venda, pelo comércio tradicional que maioritariamente comprava a armazenistas e distribuidores que formavam stocks elevados, muitas vezes cobrindo várias semanas ou meses de necessidades de consumo. Por isso mesmo e pela pouca importância que então assumia o transporte individual privado, pela organização das empresas em que a interdependência era infinitamente menor obrigando a muito menos deslocações dos seus funcionários e pela quase ausência de viagens aéreas, as necessidades urgentes de combustível (gasolina e gasóleo) eram bem menores e menos prementes. Acresce que a internacionalização da empresas era fraca, a grande maioria sendo locais ou até mesmo regionais, e a existência de fronteiras e deficientes vias de comunicação obrigava as empresas internacionais a produzirem ou, pelo menos, "stockarem" localmente. Assim, e como o transporte de mercadorias raramente assumia foros de urgência extrema, o caminho de ferro podia, por conseguinte, assumir um papel bem mais relevante, Estávamos, portanto, perante um país muito menos vulnerável a interrupções de abastecimento e distribuição de produtos essenciais.

Escusado dizer como tudo isto mudou radicalmente, vulnerabilizando a sociedade a interrupções de fornecimento mesmo que de poucos dias. Portugal (e com ele a maioria dos países europeus) é, hoje em dia, uma sociedade terciarizada, com uma rede urbana e suburbana complexa e deslocações casa-trabalho de vários quilómetros, empresas que funcionam sem stocks (cuja existência teria hoje em dia custos insuportáveis), na base do "just in time", esses mesmos stocks centralizados em Espanha, Alemanha ou Polónia, por exemplo, por via da racionalização de custos permitida pela livre circulação, com empresas interdependentes obrigando a deslocações frequentes dos seus trabalhadores e gestores. Por sua vez, a distribuição é assegurada por hiper e supermercados, cash & carries, que não constituem stocks e compram frequentemente a fornecedores geograficamente situados em zonas longínquas. A procura segmentou-se e sofisticou-se e, simultaneamente, muitos dos fabricantes de produtos hoje em dia de primeira necessidade e quase desconhecidos há 50 ou 60 anos (basta olhar para as prateleiras de “higiene e limpeza”) centralizaram a sua produção em um ou dois países europeus. A agilização e flexibilização necessárias, do lado da distribuição, para prover a este tipo de requisitos é, muitas vezes, incompatível com uma maior rigidez do caminho de ferro quando comparada com o transporte rodoviário, em modernas e rápidas auto-estradas, com distribuição door to door, horários muito mais flexíveis e cargas menores. Isto não impede, claro está, um maior aproveitamento do combóio e um aumento da sua quota de mercado no transporte de mercadorias, mas é insensato pensar que ele resolverá maioritariamente o problema, já que a essência está, isso sim, na forma e no modo como se estruturam as sociedades e que nada tem a ver com o que se passava no passado. Isso torna-as mais vulneráveis? Sem dúvida, mas será bom também, pelo menos de vez em quando e se não se importam, dar uma espreitadela para o lado dos benefícios. Talvez isso nas torne um pouco mais felizes...

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