quarta-feira, maio 09, 2007

Madeleine

Anda por aí pela "blogosfera" uma indignação não disfarçada - por vezes tintada, ela sim, pelo lugar comum e pela snobeira intelectual mais rasteira - pelo destaque dado na comunicação social, tido por excessivo e despropositado, ao caso da criança inglesa desaparecida no Algarve. Permito-me discordar, em absoluto, considerando o assunto, pelo seu tema e circunstâncias, de indiscutível relevância. Infelizmente, muitos dos comentadores desta mesma "blogosfera" mostram-se incapazes de passar do reflexo condicionado á reflexão e, por isso, tudo o que é crime, rapto ou apela, segundo eles, aos sentimentos, é imediatamente remetido para a categoria de comunicação tablóide, indigna, portanto, da sua consideração a não ser por via da excomunhão. E discordo porquê?

Em primeiro lugar, o assunto tem que ver com aquilo que é o instinto e objectivo primeiro de qualquer espécie, acima, mesmo, da sobrevivência: a continuação dessa mesma espécie, através do assegurar a sobrevivência das “crias”, dos descendentes, defendendo-os dos seus predadores. Por muito que isso possa chocar, não estamos, em muitos dos nossos padrões comportamentais, tão longe como pretenderíamos de outras espécies animais, principalmente de outros mamíferos, e este – assegurar a sobrevivência da espécie - é o objectivo básico da nossa existência. Por outro lado, fruto da diminuição da mortalidade infantil e do aumento da qualidade de vida, o nosso comportamento para com as crianças mudou radicalmente nas últimas décadas. Aquilo que era visto como normal (a morte por doença ou acidente de uma parte da descendência – o que gerava algum distanciamento face às crianças) é hoje, felizmente, visto como algo incomum e inaceitável. A diminuição da mortalidade gerou, como sua consequência, mais e melhores afectos. Estamos longe da necessidade de gerar filhos para ajudar à subsistência da família - do “a minha mulher é uma boa parideira” – e isso esteve na origem de novas atitudes e comportamentos. Mais ainda: estamos, neste caso como em outros, perante um novo tipo de predadores até aqui desconhecido e cuja actuação é facilitada pela disseminação das novas tecnologias, da globalização e da liberdade de circulação: as redes internacionais de pedofilia e adopção. É algo que temos ainda dificuldade em combater (nas sociedades mais “atrasadas” a violência, sexual ou não, sobre as crianças, era exercida pela família ou por próximos), tal como terá acontecido com outras espécies quando da introdução pelo homem de novos predadores ou das armas de fogo, e que por isso contribui para potenciar os nossos medos e impotências. Em certa medida constitui um novo “medo” desconhecido, tal como aconteceu com a ameaça das invasões marcianas dos anos cinquenta, mas que aqui é bem mais real. Estamos assim, portanto, perante algo de novo e que constitui uma questão social emergente, de indiscutível importância para as novas gerações, merecendo, por isso, o tratamento mediático alargado que lhe tem sido concedido.

Tem também sido glosado o tema da desigualdade de tratamento atribuída a este caso, por envolver cidadãos estrangeiros, em contraste com outros casos, mais ou menos recentes, de desaparecimento de crianças ou adolescentes. Mais uma vez, acho não têm razão.

Contrariando uma das recentes análises de Vasco Pulido Valente no “Público”, a propósito de um outro tema, numa sociedade desigual nem sequer os sentimentos “igualizam”. Reagimos a crimes, desgraças e catástrofes consoante a identificação que temos com os que as sofrem e, diferentemente, segundo os nossos valores, a nossa cultura, as nossa vivência e, sacrilégio!, a nossa classe social. Não temos perante um tsunami na Ásia, um atentado terrorista no Bali ou a queda de um avião na Colômbia, a mesma reacção do que teríamos se isso acontecesse nos USA, na Europa, em Espanha, no nosso país ou na nossa cidade. Do mesmo modo que não reagimos á morte inesperada de um familiar ou amigo chegado como o fazemos em relação a alguém mais distante, por muito que o estimemos. Uma família da classe média urbana não reage à perda catastrófica dos seus “teres e haveres” do mesmo modo que o faz uma família do mundo rural mais profundo, por muito que isso possa ter para ambas consequências idênticas. E assim sucessivamente... Por isso, não reagimos ao desaparecimento de uma criança da classe média britânica em férias no Algarve, aparentemente integrada num meio familiar estável e favorecido e, tudo leva a crer, vítima de um novo tipo de crime, do mesmo modo que reagimos e analisamos o desaparecimento de alguém raptado por razões de disputa familiar ou sujeito a maus tratos numa família “disfuncional”. Não assistimos ao desaparecimento de um bebé, como é o caso, do mesmo modo que o fazemos face a um adolescente ou uma criança com maior grau de autonomia. Será cruel, mas é assim, e sabemos onde nos levaram as construções apressadas do “homem novo”. O tratamento concedido ao caso pelas polícias é consequência disso mesmo, do impacto diferenciado que os casos possam ter nesses mesmos media e na opinião pública, acrescido da importância do turismo como actividade principal de uma região, como é o caso do Algarve e, por extensão, o do país.

Por último, será provincianismo apelar à colaboração da polícia britânica para ajudar na resolução do caso ou isso é apenas uma medida de bom senso e profissionalismo ditada pela maior preparação e experiência dessa mesma polícia neste tipo de casos? Basta acompanhar regularmente ao media ingleses, ou, até, as respectivas séries policiais de TV (cujas histórias, mesmo que romanceadas, acabam por reflectir aquilo que são as preocupações e a “cena criminal” dominante no país) – para concluir que a sua expertise, fruto da maior incidência deste tipo de casos, não será, por certo, de menosprezar.

Para concluir: se há reacções e análises que não nos surpreendem se e quando expressas nos vários "fóruns" de opinião em televisões e rádios, a outros se pede que pensem. No fundo, não é o que devíamos pedir um pouco a todos nós?


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