Em parte alguma da Constituição da República Portuguesa se pode ler ou interpretar de entre as funções do Presidente da República ser ele um "provedor do povo" (seja lá o que isso for). Ao assumir-se como tal, inventando para si novas funções, ampliando as constitucionalmente consagradas, está portanto Cavaco Silva a desrespeitar a Constituição que jurou defender, o que é grave. Pior e mais grave ainda: ao fazer esse apelo ao "povo", no seu conjunto e inorgânicamente considerado, pretendendo assumir-se como intérprete da sua vontade, Cavaco Silva deixa-se resvalar para o pior dos populismos proto-fascitas sul-americanos, assim um género de peronismo em que interpretará, talvez, o papel de uma Eva Péron do género masculino. É que não nos esqueçamos: todos os ditadores, nas suas versões "hard-core ou soft-core", governam ou governaram sempre em nome do "povo", daquilo que eles próprios definem como sendo os "seus superiores interesses".
Que as afirmações de Cavaco Silva sejam lamentáveis, escusado será dizê-lo; mas velhos hábitos "die hard". Perigosas, nestes tempos de inquietude e em que a democracia e a política parecem tender a ser substituídas por governos de uma tecnocracia que nunca tem dúvidas e raramente se engana, de certeza absoluta. Mas se estivermos atentos, este género de deriva acaba por ser potenciado por um anacrónico regime dito "semi-presidencialista", que estabelece a eleição directa e por sufrágio universal de um presidente que não governa nem é eleito em função de um programa político, mas sim de um "perfil" ou "personalidade". É esse o verdadeiro "ovo da serpente" que urge esmagar.
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