quinta-feira, dezembro 13, 2007

A "noite" do Porto...

Na “Quadratura do Círculo” de ontem (SIC Notícias), Pacheco Pereira afirmou que os recentes acontecimentos na “noite” do Porto estão de certo modo ligados ao que ele sugeriu serem as relações espúrias entre alguma actividade económica (construção civil, por exemplo) e claques de futebol (mormente FCP), promiscuidade essa especialmente fomentada no tempo em que o PS era dominante na Câmara do Porto e à qual Rui Rio veio, de certo modo, pôr termo. Mais ainda, afirmou Pacheco Pereira ser um fenómeno específico da cidade do Porto (peço desculpa se o rigor não é total mas penso consegui exprimir, na generalidade, o que pensa e disse JPP) e que é sintomático que o filme “Corrupção” tenha por cenário a cidade.

Em primeiro lugar a minha “chapelada”: JPP consegue condensar numa frase, que é também um programa político, a defesa do seu amigo Rui Rio e o ataque a dois dos seus principais inimigos de estimação: a “futebolite” (a expressão é dele) e o Partido Socialista. Mas tem razão! Tem mesmo toda a razão, só que as suas afirmações se limitam a ser uma mera, embora verdadeira e tocando onde mais dói, constatação da realidade, e há que levar a análise um pouco mais longe, tentando encontrar as razões profundas dessa – vamos chamar-lhe assim – especificidade portuense. Pois vamos a isso, começando por afirmar que nada me liga ao Porto, cidade onde me desloquei maioritariamente por questões profissionais, onde nunca vivi e com a qual não mantenho laços familiares ou de excepcional afectividade.

Algumas pessoas do Porto costumavam dizer-me que Lisboa era uma cidade aristocrática e o Porto uma cidade burguesa, o que, podendo à primeira vista ser considerado uma versão do lugar comum “Porto, capital do trabalho” (todas as cidades portuguesas são, hoje em dia, capitais de qualquer coisa – até as Caldas da Rainha...?!), contém em si algo de verdadeiro: historicamente, Lisboa, capital do império, sempre foi a cidade da Administração, da Banca e dos grandes grupos económicos ligados ao capital financeiro e à aristocracia (Alfredo da Silva, por exemplo, casou a filha com o conde do Cartaxo, D. Manuel de Melo) e o Porto do empreendorismo burguês, mais individualista, mercantil e exportador. A própria localização das duas cidades parece não ser alheia a estes modelos, sendo que para as fábricas da zona de Lisboa emigram os proletários agrícolas do Alentejo e Ribatejo, sem terra, ou até camponeses das Beiras que pela distância perdem mais facilmente as suas ligações às “terras” de origem, e o Porto recruta a sua mão de obra no minifúndio circundante, onde essa ligação à terra se mantém e os proventos dela retirados ajudam à manutenção dos baixos salários numa indústria de pouco valor acrescentado. Também nas mulheres, fruto de uma indústria considerada mais “vocacionada” para a mão-de-obra feminina (têxteis, etc) e onde o salário assume muitas vezes a forma de um complemento ao rendimento familiar. É isto que, em traços muito gerais e grosseiros, o 25 de Abril vai encontrar, tendo como resultado uma muito maior implantação do PCP e "esquerda revolucionária" naquilo que passou para a história do PREC, e não só, como a “Cintura Industrial de Lisboa”. Mas como, com este “arrazoado” mais ou menos histórico, queremos chegar aos homicídios da noite portuense? Vamos ver...

É esta estrutura empresarial e social que faz com que a luta contra a hegemonia do PCP no pós 25 de Abril se venha a “centrar” no norte, muitas vezes com recurso a algum bas fond da região para determinado tipo de acções mais marginais, nas margens da legalidade mas, por necessidade, reconhecidas e incentivadas. É também este tipo de estrutura empresarial e estes acontecimentos históricos que vão dar origem a uma hegemonia económica do norte nos tempos subsequentes, tendo como ponta de lança e cimento ideológico o Futebol Clube do Porto na sua luta, também ela nem sempre clara e muitas vezes recorrendo a métodos mais ou menos subterrâneos, contra a “capital”, e constituindo a sua principal claque, com as suas ligações espúrias, uma “tropa de choque” (SturmAbteilung) disponível. É a partir da estrutura política do Partido Socialista no Porto e em aliança com ela, aliança começada a forjar durante o PREC e na luta contra o PCP por si maioritariamente dirigida (muitos futuros dirigentes do PS portuense, como Fernando Gomes, nascem aí), que este “modelo” alcançou força e influência políticas. É o empreendorismo e individualismo do norte, o seu espírito de iniciativa fundado em razões históricas e tão presente na sua estrutura empresarial onde a pequena empresa é elemento constitutivo essencial - e exemplo do sucesso desse esforço individual - que fomenta a livre iniciativa e ânsia de enriquecimento rápido, o que tendo muito de positivo, claro, também impele, numa região onde a formação escolar é tradicionalmente baixa, ao recurso a expedientes e actividades facilmente lucrativas mas nem sempre legítimas, muitas vezes ilegais ou, pelo menos, situadas na área da economia subterrânea. Por fim, é o menor cosmopolitismo do Porto ou até mesmo um certo provincianismo social, um certo novo-riquismo com raízes já fundas e moldado por esta estrutura, que tornará o negócio “da noite”, com características que bem o diferenciam de Lisboa, especialmente apetecível e lucrativo, porque muito frequentado e também ao abrigo de um estatuto de alguma impunidade estabelecido pelas cumplicidades ao longo dos anos forjadas e pelas interdependências tecidas.

Pois voltemos então ao princípio: tem razão José Pacheco Pereira (um portuense) quanto às especificidades da “noite” do Porto. Foi este o “caldo de cultura”, este entrelaçar de vários tráficos de influência e cumplicidades várias forjadas ao longo de anos, que, aqui traçado na forma de um esboço ligeiro, esteve e está na base dos acontecimentos recentes, o que torna o caso bem mais melindroso e de resolução complexa e prova, uma vez mais, como se isso fosse necessário, que tudo tem duas faces: muito do que jogou a favor da democracia, em determinado tempo e contexto históricos, joga agora contra ela. “Cruel dilema”, como diria Vasco Santana!

1 comentário:

Anónimo disse...

Este seu post recorda-me uma frase de Álvaro Cunhal no Verão quente de 75. Dizia, então, ele que para derrotar a reacção seria capaz de se aliar ao diabo.
Aconteceu que O Dr. Soares seguiu à risca o dito Dr. Cunhal e, para salvar a democracia fez alianças com o que de melhor e pior havia no Norte. Convém lembrar que, para bem o mal dos seus pecados, o Dr. PP também se aliou.