segunda-feira, setembro 24, 2007

O "Gato Maltês", num "post" bem longo, fala de livros a pedido do "Miss Pearls"

Pois pede-me a Miss Pearls, no “também seu” “Corta-Fitas” (não poderia também tal blog luzir o título de “Américo Tomás”, the one and only?) e do seu mui alto estatuto de Línguas e Literaturas Modernas, das “humanísticas” que é onde acontecem, por definição e tradição, essas coisas das sensibilidades e dos afectos, para eu, modesto tecnocrata, por tradição frio e insensível como só o podem ser os verdadeiros, que escrevinhe algo sobre livros, essa coisa que, em última das últimas análises, serve para separar o trigo do joio, isto é, os verdadeiros intelectuais dos pobres de espírito, os primeiros com direito ao céu na terra e os segundos ao reino dos céus. Bom, mas vamos lá à tarefa, que já se vai fazendo para o tarde, isto é, já vai chegando o fresco dos fins de tarde de Outono (tomara já) que anuncia o fim da silly season, que é mesmo a época adequada a tais futilidades. Não dos livros, mas das listas de livros favoritos, dos filmes das nossas vidas ou das músicas para levar para uma ilha deserta, assuntos, para mim, bem mais adequados a conversa de “engate” com interlocutora não muito exigente num por do sol algarvio com vinho branco à mistura.
Pois esta é a história dos meus livros - pelo menos alguma, cara Miss Pearls - e aqui vai de seguida.

Como toda a gente, ou quase, da minha geração, cheguei à leitura pelos “Cinco”, claro está, comprados nas férias de Natal ou Páscoa na livraria DN que existia no Chiado onde hoje é a Hermès. Curiosamente, nunca me identifiquei com qualquer personagem ( o Júlio era demasiado sério e bem comportado e o David cinzentão), mas mais com o ambiente, os picnics e as sanduíches, acho que tudo isso ajudando a definir para todo o sempre a minha anglofilia. No caso das sanduíches deu mesmo origem a um conflito, que ainda hoje se mantém, com as sanduíches à portuguesa, normalmente (se não estamos atentos) constituídas por uma fatia translúcida de queijo “dito” flamengo dentro daquele estranho objecto, do género “pão oco por dentro”, a que os portugueses dão o nome de “carcassa” ou “papo-seco”. Ah, e ainda houve o “Emílio e os Detectives” do Erich Kästner, seguido de um outro cujo nome se me escapa mas metia também o Emílio, que me lembro ter lido numa daquelas intermináveis férias de praia que duravam dois meses e acabavam com as “marés vivas” de Setembro e as primeiras chuvas de Outono.

Entrado na adolescência, vieram uns livros de capa dura, biografias de inventores, descobridores e pioneiros do oeste, desde o casal Curie a Thomas Edison, passando por Kit Carson, Buffalo Bill, Marconi e ofícios correlativos, seguidos a distância pelos romances de cavalaria - Walter Scott, pois claro - “Ivanhoe” e por aí fora. Até aqui tudo certinho - não é? -, mas também por aqui começam a chegar algumas contradições, nem sempre objecto de “justa resolução no seio do povo”: nunca me entusiasmei lá muito com o Emílio Salgari e o Sandokan (vá lá saber-se o porquê), tendo mesmo lido poucos dos dele, e criei o meu primeiro ódio de estimação literário na pessoa e figura do Sr. Charles Dickens que, como dizia no meu livro de inglês do antigo 6ª ou 7º ano, escreveu “David Copperfield was a boy whose father died before he was born”. Pois acho foi mesmo por isso, tudo muito lúgubre e triste, negro mesmo, demasiado a puxar á “lagrimita” e nada consentâneo com a minha visão "glamourosa" do mundo e da vida. Como diz um velho amigo meu, era já a minha “insensibilidade social” a começar a manifestar-se. Pois que fosse... Manifestar-se-ia também, mais tarde, como verá! Ah, mas havia o Jules Verne, que bem compensava, com enormíssimas vantagens, a falta do Charles Dickens. Foram, até hoje e que me lembre, talvez os únicos livros que aluguei, na biblioteca do Liceu, embora fosse também comprando alguns e o meu pai tivesse chegado a casa, um dia, com um exemplar já antigo e com grafia em desuso (a que eu achei muita graça) da “Ilha Misteriosa”. Quanto ao Miguel Strogoff, o “Correio do Czar”, ainda me lembro de um exemplar que trazia um esquema explicando porque o “dito” não tinha ficado cego com a espada em “brasa”. Não tentei repetir a experiência, mas lá que era entusiasmante...

A partir para aí dos catorze, férias sem exame passaram a ser sinónimo de policiais da “Vampiro”, Agatha Christie, Erle Stanley Gardner, Rex Stout e Ellery Queen à cabeça. Nada de especialmente notável, portanto. Tudo muito mainstreem. Mas, tan, tan, tan, tan, à medida que se passa dos early para os late teens, as necessidades aumentam e, depois de passagem pelo Herculano e pelo Eça, obrigatório lá por casa – herdei do meu pai uma edição completa das obras do Eça (Lello & Irmão, 1945) e um “Mandarim” de 1907 -, eis que a minha insensibilidade social se manifesta de novo, face, agora, ao tão cantado neo-realismo – hem, aposto que desta gostou!!! – obrigatório à época numa família urbana de tradições liberais e, em parte, “reviralhista”. Final dos anos sessenta, sem quaisquer tradições ou ligações rurais para lá das criadas que lá por casa vinham maioritariamente de uma aldeia ali do Oeste, queria eu, adolescente urbano e fanático do rock n’ roll, saber lá dessas vidas dos ceifeiros do alentejo e dos operários das fábricas, que me diziam tanto respeito como as lições "salazarentas" dos livros da segunda e terceira classe, povoadas de avôs velhinhos e com longas barbas brancas, procissões e pais que regressavam, enxada ao ombro, do trabalho do campo? Claro que achava trabalho duro, talvez injusto e essas coisas assim, mas, para mim, como para muitos como eu, contestação à ditadura era pelo lado do conservadorismo social, do provincianismo do país, dos usos e costumes, da censura que nos impedia de ver os filmes “lá de fora” e, claro, da guerra. Que me reconcilia então com a literatura? Bom, um escritor, hoje em dia, considerado menor (não serei eu que estarei em completo desacordo), mas que falava de gente que se cruzava comigo e de assuntos "que me tocavam e diziam respeito” – a realidade urbana. E, depois, aquele que considero um livro-chave na modernidade da literatura portuguesa. No primeiro caso, refiro-me a Luís Sttau Monteiro e principalmente aos “Angústia para o Jantar” e “Um Homem Não Chora”; no segundo caso, o “Delfim” (e o ensaio “A Cartilha do Marialva”) do José Cardoso Pires.

Pois quer que continue, cara Miss Pearls? Pois aí vai. Bom, passando rapidamente pelo teatro do absurdo e por Eugene Ionescu - que, confesso, em dada altura me atraíram depois de uma leitura "em voz alta” do meu pai, um dia a seguir ao jantar, de “A Cantora Careca” (numa primeira abordagem, pensei que o meu pai estava a gozar connosco) - o início da idade adulta é marcado por aquilo que considero duas referências literárias que me ficaram para a vida. Um deles é, desde aí, o meu único (ou melhor, únicos) livro de cabeceira (é assim que se diz, não é?), a que volto sempre e sempre: a poesia “beat” de Ginsberg (“The Owl and Other Poems”) e Lawrence Ferlinghetti (“The Coney Island Of The Mind” e “Pictures Of The Gone World”, principalmente). Fotografia de JC à porta da City Lights de San Francisco faz parte, em local de destaque, do espólio cá de casa; e “The World Is A Beautiful Place” e “Just As I Used to Say” leituras que sei de cor. A outra referência foi o “Nouveau Roman”, principalmente depois de ler a Duras de “Moderato Cantabile” e o guião de “Hiroxima, Mon Amour”. Também “L’Anné Derniére...” de Alain Robe Grillet.

Bom, muitas e variegadas coisas se passaram depois disso, tendo chegado frequentemente à literatura através do cinema (olhe, foi o caso recente de “A Costa dos Murmúrios”, mas confesso preferi a Margarida Cardoso à Lídia Jorge), ou ao cinema através da literatura, como foi o caso da já citada Duras e do excelente “The End Of The Affair”, de Graham Green, um livro que tinha recomendado aos meus filhos, católicos. Pelo meio, algo ficou, como, por exemplo, o “Less Than Zero” do Ellis, o "Go-Between do L. P. Hartley ou a belíssima escrita da Agustina (confesso que, por vezes, muito chata). Mas, como esta já vai longa, por aqui me fico e despeço, com estas - algumas - referências literárias de um tecnocrata “frio e empedernido”, upon request de uma bibliotecária de Línguas e Literaturas Modernas, de seu nome Miss Pearls. Mas, já que estamos em maré de desafios, que tal se, em jeito de retribuição, eu lhe pedir agora para definir umas estratégias, ler uns P&L ou analisar uns estudos de mercado? Boa?

3 comentários:

M Isabel G disse...

Olhe afinal os meus gostos não diferem assim tanto dos seus "modesto tecnocrata, por tradição frio e insensível como só o podem ser os verdadeiros" .

"eu lhe pedir agora para definir umas estratégias, ler uns P&L ou analisar uns estudos de mercado? Boa?"
Não me peça isso a mim nem a ningué, caro JC :)

Obrigada pela sua paciência.
Isabel

M Isabel G disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eurydice disse...

JC, gostei de espreitar a sua alma literária. Confesso que tive alguma surpresa!... É um belo património, e apreciei muito este post!