Rui Ramos vem hoje no “Público” (sem link) dissertar sobre a identidade de esquerda do PS, o que não deixa de ser um assunto interessante e, principalmente, actual, embora RR se limite a algumas citações de antigos secretários-gerais e esqueça o enquadramento histórico do assunto, sem o qual tudo será mais difícil de entender. Senão vejamos: o que distingue historicamente a esquerda social–democrata e socialista dos partidos de direita, ditos “burgueses” fazendo uso da expressão usada nos países nórdicos? Ao nível da economia, uma maior intervenção estatal que, em alguns casos, podia chegar à nacionalização de alguns sectores–chave, seja, um menor foco no mercado. A nível das questões sociais e do trabalho, alguma ligação com os interesses sindicais e uma maior preocupação com a protecção e coesão sociais, logo, com o que se convencionou chamar de wellfare state - embora aqui, em maior ou menor grau, tenha de compartilhar os “louros” com a democracia–cristã. Em termos geo–estratégicos, uma maior ortodoxia (chamemo-lhe assim) no alinhamento com o bloco ocidental, embora aqui também existam excepções como a França de De Gaulle. Uma maior abertura e progressismo das questões de sociedade, tal qual elas se foram apresentando ao longo da história do século XX.
Foi a vitória das democracias e do capitalismo na “guerra fria” (curiosamente, verifica-se hoje que, ao contrário daquilo que alguma esquerda afirmava quando declarava que não existia democracia sem socialismo, o que não existe, de facto, é democracia sem capitalismo e que aquela é a sua forma de expressão política mais avançada) - ainda por cima na sua forma mais “pura e dura” do Reaganismo e Thatcherismo -, e a subsequente globalização, que vieram a tornar obsoletas, esvaziando-as de sentido, algumas destas questões que definiam tradicionalmente a esquerda democrática e deram à direita um lugar de vanguarda no pensamento e na inovação das ideias, dominando, hoje em dia, os media e aquilo que se designa em "marketing" por share of mind, neste caso, do pensamento político. Assim, foi a globalização que tornou inúteis as nacionalizações e foi o desenvolvimento das novas tecnologias e o fortalecimento das classes médias associado à terciarização que tornou rentáveis, logo atractivos para os “privados”, sectores da economia que até aí o não eram. A demografia, o aumento da esperança de vida, o desemprego e o fim do emprego de longa duração, gerados pela globalização e pela reconversão tecnológica, e o aumento exponencial dos custos com a saúde colocou em causa o wellfare state, pelo menos na forma como o conhecíamos. O fim dos blocos político–militares arrastou o terceiro mundo e os “não alinhados”, com toda a carga de atractividade emocional que em tempos poderiam ter possuído, e os sindicatos não souberam, ou não conseguiram ainda, adaptar-se ao mundo emergente do fim das “convenções colectivas” e da necessária flexibilidade e adaptabilidade laboral. Em Portugal, para agravar a situação, actuam de acordo com uma agenda fundamentalmente partidária e corporativa e não resistirão, certamente, a uma reforma do Estado e da Função Pública num sentido mais liberal, muito menos a uma restruturação do sector educativo, “destalinizando-o”. Bom, mas como nem tudo são agruras, foi ironicamente a própria liberalização económica que, em conjunto com os desenvolvimentos da genética e da bio–medicina, tornaram, e tornam, cada vez mais actuais as questões de “sociedade”, em relação às quais a esquerda democrática apresenta, tradicionalmente, uma maior abertura. Por exemplo, será que organizações tão economicamente anti-liberais como o Bloco de Esquerda ou a UMAR já pensaram nos interesses que alguns grupos privados de saúde (as clínicas de Badajoz são apenas um exemplo) poderão ter numa lei mais liberal sobre o aborto?
Assim sendo, que resta, pois, à esquerda democrática em termos de ticket político específico? No fundo, aquele que, nos últimos dez anos, tem sido a seu e a define, ou seja:
- Conduzir e controlar, em termos de bom senso político, a urgente reconversão do Estado e das suas funções, tornando-o mais eficaz e competitivo e evitando os “desvarios” ultra liberais do tipo “despedir duzentos mil funcionários públicos” que conduziriam esse mesmo Estado ao colapso e o país a uma crise social e económica sem precedentes.
- Reformar do wellfare state tornando-o, tanto quanto possível, sustentável a prazo e garantindo a necessária coesão e protecção sociais.
- Tornar a escola pública competitiva e melhorar os níveis de educação por ela proporcionados.
- Ser um aliado crítico dos USA na luta anti–terrorista e em termos geo-estratégicos evitando os “desvios” Bushistas.
- Conduzir uma agenda liberal das questões de sociedade.
Como se pode depreender, isto implicará, pelo menos no que aos três primeiros pontos diz respeito, a adopção de medidas que, numa primeira análise, poderão parecer ir contra tudo aquilo que tem sido, ao longo dos anos, a linha essencial da sua actuação. Daí a incompreensão. Mas o mundo mudou, e tudo o que vá muito para além disto, em termos gerais, parece-me, assim, desajustado da realidade, logo, utópico. Parece que o PS o terá entendido... Será?
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