Texto do autor deste "blog", publicado no "Gato Maltês" no dia 1 de Abril de 2007, que Luís Pinheiro de Almeida teve a gentileza de incluir no seu novo livro "Biografia do Ié-Ié", acabado de editar pela Documenta e que hoje é apresentado, pelas 17h, no Cine-Teatro da Encarnação. Ficam a referência e os meus públicos agradecimentos.
"No dia 1 de Abril de
1965, um pouco depois das sete horas da tarde, Pedro Castelo anunciava, após
alguns acordes do instrumental “Revenge”, dos Kinks, na frequência modulada
(uma novidade) do Rádio Clube Português, “Em Órbita”: “um programa feito por
nós e dito por mim”. Não sei se a frase foi dita logo na abertura do primeiro
programa, ou mais tarde por Cândido Mota, o seu apresentador nos anos
subsequentes, mas sei que se tornou frequente, ao longo dos anos, e é isso que
importa. Uma frase que funcionava como se de uma assinatura, uma síntese se
tratasse, encapsulando em si um novo conceito ou parte dele: não estávamos
perante um programa que promovia “estrelas da rádio” (muito comuns na época),
quer fossem os seus autores ou o apresentador (na altura dizia-se “locutor”),
mas anunciava, isso sim, uma certa radicalidade, um corte com a tradição de
falsa intimidade com o ouvinte, tantas vezes expressa, pelos chamados
“locutores da voz doce” e suas companheiras de emissão, no “amigos ouvintes,
muito boa noite; somos a vossa companhia durante estes próximos minutos”.
Radicalidade,
intransigência, fidelidade aos princípios definidos pelos seus autores (Jorge
Gil, João Manuel Alexandre – falecido no dia 29 de Setembro de 1969 num
desastre de automóvel - e Pedro
Albergaria, entre outros) sem qualquer tentativa de ir “ao encontro do gosto do
público”, era este o conceito, o que só era “permitido” por se tratar da rede
de frequência modulada, algo que, ao tempo, era uma novidade que só um número
limitado de receptores possuía, o que a tornava numa frequência elitista, e o
custo da respectiva emissão, e da publicidade que a mantinha, substancialmente
mais baixos e acessíveis a um maior número de anunciantes. Aliás, até no caso
da publicidade o “Em Órbita” foi de certo modo pioneiro, pois, se bem lembro,
tinha um patrocínio único seleccionado pelos próprios autores do programa com
“spots” adaptados ao seu “mood and tone”, o que, longe de ser um acaso, era
essencial à apresentação da sua unidade conceptual.
Mas a sua marca
mais identificativa foi o facto de ter sido o primeiro programa de rádio a
apenas “passar”, de modo consistente e intransigente no gosto, música popular
anglo-americana, "rock & roll", a música que mudou o mundo e era
considerada na altura, no Portugal ultraconservador da ditadura, como “música e
batuque de pretos” (sim, no Portugal “multirracial”), pecado original que
conduzia directamente à depravação dos costumes, diluição da moral e
delinquência juvenis. Aliás, o que era curioso verificar era o facto da
esquerda comunista e a ditadura salazarista terem perante o "rock &
roll" uma atitude idêntica, embora com propostas diferenciadas: a música
de variedades, para o regime, e a canção de texto francesa para a esquerda
comunista.
Essa radicalidade,
esse “desprezo” (chamemo-lhe assim) pelo gosto das maiorias substituído pelo
gosto dos seus autores, essa “arrogância” assumida (sim, não há mal nenhum
nisso) ajudou a formar e a formatar o gosto musical (e não só) de uma geração,
mas foi muito para além disso: contribuiu para a criação, em muitos
adolescentes de então, onde felizmente me incluo, de uma personalidade e um
novo modo ver e entender o mundo. Foi esta “atitude” que levou Jorge Gil a
abrir uma excepção para chamar a atenção para José Afonso, ainda no tempo das
baladas de Coimbra, e a “passar” a “Lenda de El-Rei D. Sebastião”, do Quarteto
1111, na altura uma pedrada no charco da música portuguesa. Foi também essa
atitude que levou o “Em Órbita" a eleger, num dos seus anos de emissão,
“Strangers In The Night”, de Frank Sinatra, um dos temas mais “passados” nesse
ano nos vários programas de rádio, como a pior canção do ano, para grande
escândalo da maioria e gozo dos autores do programa e dos seus indefectíveis."
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