sexta-feira, novembro 14, 2014

"Vistos Gold": a compra de um direito?

  1. O alegado caso de corrupção no processo de atribuição dos "vistos Gold" tem pelo menos um mérito: demonstrar que o Estado português está disposto a permitir o acesso a um direito básico (a concessão do direito de residência a estrangeiros originários de países não pertencentes à UE), que deveria ser igual para todos, independentemente da sua condição, através da sua compra (no fundo, é do que se trata). Talvez não chegue ao ponto de dizer que estão a ser postos em causa direitos liberdades e garantias (e no limite...), mas fácil é perceber que, pelo menos, o Estado português está a dar um péssimo exemplo na forma como trata a questão da imigração e da igualdade de tratamento e de oportunidades para os que procuram o nosso país.
  2. Esse exemplo estender-se-à facilmente a outras áreas e a outros procedimentos: se o Estado considera legítimo, desejável e legal a compra de um direito, porque não o poderei fazer, mesmo que com recurso a métodos ilegais, em relação a quaisquer outras actividades? No limite, podemos considerar estarmos perante um apelo mais ou menos encapotado à corrupção. 
  3. Acresce que do modo como a lei está "desenhada", a oportunidade só pode mesmo atrair dinheiro e cidadãos de proveniências mais do que duvidosas, e com intenções que facilmente se adivinham, até porque estamos perante o primeiro passo, necessário, para que esses cidadãos venham a adquirir no futuro as nacionalidades portuguesa e europeia. Deixem-se, portanto, de mentiras piedosas e hipocrisia sobre o controlo do registo dos estrangeiros que a ela pretendem ter acesso. Por alguma razão a maioria dos que aproveitaram a benesse são cidadãos chineses, angolanos e russos, países onde não existe liberdade empresarial, são dominados por oligarquias e a corrupção está instalada ao mais alto nível da governação. Mas se o Estado português vendeu algumas empresas estratégicas ao Estado chinês e os investimentos do Estado angolano em Portugal, incluindo no sector sensível da comunicação social, atingem níveis elevadíssimos, onde está a surpresa?
  4. Ah, mas temos de atrair investimento estrangeiro, e para isso há que negociar e conceder facilidades. De acordo, mas convém lembrar isso sempre foi feito - e bem - com as grandes empresas que pretendiam instalar-se em Portugal, caso a caso e em função do seu interesse para a economia portuguesa (como deve ser, portanto),concedendo benefícios fiscais e outro tipo de facilidades e garantias de vária ordem (por exemplo, para "quadros" expatriados"). Mas não me consta alguma vez tal tenha acontecido, pura e simplesmente, através da compra de um direito básico.
  5. Ah, mas existem leis semelhantes em outros Estados europeus e portugal tem de ser competitivo na captação de investimento estrangeiro. Em primeiro lugar, como digo no ponto 4., existem muitas maneiras de atrair investimento estrangeiro sem colocar em causa a igualdade de tratamento no acesso a direitos fundamentais. Em segundo lugar, é altamente questionável o interesse, actual e futuro, do investimento que tem sido captado através dos "vistos Gold", bem como do "caldo de cultura" negativo que pode e já está a gerar na sociedade e no relacionamento entre os cidadãos e a política (e isso também conta, e muito). Por último, a facto de tal medida poder ser comum a muitos países da UE só demonstra, infelizmente, o estado de "abandalhamento" em que se estão a deixar cair muitas das democracias liberais, o que não augura nada de especialmente positivo para todos os que nelas se reconhecem. E se tentássemos copiar, das democracias liberais mais desenvolvidas, fundamentalmente os bons exemplos?
  6. Já agora, um aparte: quantos dos defensores da actual lei que rege a concessão de "vistos Gold" já não se manifestaram - muitas vezes até com despropositado radicalismo, note-se - contra a presença nas selecções nacionais de futebol de ex-cidadãos estrangeiros que adquiriram a nacionalidade portuguesa cumprindo todos os requisitos legais e em condições de igualdade com quaisquer outros estrangeiros em idênticas circunstâncias, isto é, não comprando esse direito? Pois...

2 comentários:

Queirosiano disse...

Evidentemente, e por pudor, não se averigua a origem do dinheiro trazido pelos interessados. Portanto, a legislação relativa ao branqueamento de capitais não se aplica de forma geral e indistinta. Não sei o que mais admirar aqui: o descaramento ou a hipocrisia.
E ainda há quem comente os russos que enxameiam a Côte d'Azur com malas cheias de dinheiro...

JC disse...

Por pudor, caro Queirosiano? Por interesse, diria eu.